São Paulo, quinta-feira, 06 de outubro de 2011

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NINA HORTA

Receitas do Peru!


Só é possível executar alguma comida, quando se conhece a fome, a fartura e não o laboratório limpo

Vocês vão ter que me aturar por algum tempo estudando a comida do Peru. Poderiam me perguntar por que não compro um bom livro de receitas e começo a fazer pratos peruanos e fico quieta?
Seria bom, se fosse assim. Até comprei, e muitos. Mas acontece que só é possível executar alguma comida quando você conhece os fantasmas, a fome, a fartura, a celebração, e não o laboratório limpo, com receitas enxutas, com jeito de bula de remédio para aviar na farmácia de manipulação.
Não digo que não haja necessidade de quantidades e tempos, mas é preciso também, em linguagem coloquial, prever desastres, descrever texturas para que realmente funcione como receita e não como cãoguia de cego que seguimos com toda fé sem saber bem onde vai dar.
Tem também os problemas da língua. Achei "quéchua" muito difícil, essa língua vou ter que pular. Mas é um povo contador de histórias magníficas.
Vejam com exemplos práticos em português. Fala-se a palavra "manga" e já vem à cabeça "úmida", "cheirosa", "escorregadia", "pintas pretas", "lambuzada", "terebentina", "coquinho", "com leite mata".
É uma linguagem amarela de infância. A palavra "pudim" só poderia se chamar assim. O "pê" segura o restante das letras que lembram moleza, "plof, plof", engolir sem mastigar, escorregar. "Batata, banana", comidas simples de encher a barriga; "fruta-do-conde" já faz lembrar o conde e a condessa cuspindo caroço num pratinho de bordas douradas.
Verdade que ler, assistir a filmes, cozinhar, ouvir música de outro lugar só cobram sentido se formos além da geografia e mesmo de sua história. Precisamos saber o que é um peruano, como ele pensa, como se move dentro daquele livro de receitas, a que horas come seu tiradito, quais são suas comidas celebratórias, as comidas que evita no luto, para começarmos a entender um pouco daquele porquinho-da-índia de que tanto gostam. Alguns.
Colocar a comida no seu contexto é o principal. Quando um cozinheiro e os comedores não reconhecem os ingredientes, não sabem quais as regras principais de suas misturas e nem onde e quando são servidos, a que fábulas estão ligados, não entendem daquela cozinha. Podemos até ler uma receita e fazer um prato gostoso, mas não é aquele prato conhecido daquela terra.
Me veio à cabeça um exemplo. Recebemos aqui em casa um americano que corria o mundo. Antes que chegasse, perguntei à mãe dele qual seu prato preferido. Era fácil. Uma carne moída com repolho, o tempero meio oriental. Mandou receita explicada em letra de forma.
Quando o rapaz chegou, cansado, tinha uma mesa bonita e aquela comidinha de mãe. Pois o cara foi comendo sem surpresa. Perguntei se aquela comida fazia com que ele se lembrasse de alguma coisa.
Respondeu com um olhar vidrado, percebia-se que nem entendia do que eu estava falando. "Mas é o repolho de sua mãe!" Começou a rir baixinho sacudindo o corpo. Até hoje não entendi. Cada mãe é uma, deve ser isso. E cada receita também.
Em todo caso, estou fazendo uma bibliografia do Peru pós-colonizição, entrem no blog se quiserem. E desculpem a bagunça, deu um treco nele, não consigo corrigir.

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