São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

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Óbito de bebê prova existência de família

DA SUCURSAL DO RIO

Na falta de certidões de nascimento e de outros documentos, Elisabeth Pereira de Oliveira guarda num saco vazio de feijão as provas da existência da família, como os cartões de vacina das crianças e a conta de luz (emitida em nome do pai dela).
Entre os papéis amassados e sujos destaca-se um único documento real: a certidão de óbito de sua última filha, Rebeca Pereira de Oliveira da Silva, morta em 27 de abril de 2002, pouco depois de nascer, no Hospital Rocha Faria, em Campo Grande (zona oeste).
Elisabeth conta que o ex-marido, Sérgio da Silva, dono de certidão de nascimento e carteira de identidade, conseguiu tirar o atestado de óbito só com os dados dele. "Ficaram com pena porque a gente tinha de enterrar a coitadinha. Mas nunca conseguimos registrar as crianças só com a certidão do pai. A que morreu teve mais sorte, pelo menos teve um documento na vidinha dela", diz.
Ela afirma que, para dar à luz os cinco filhos, conseguiu se internar em hospitais públicos, mesmo sem documentos. Para retirar as crianças, precisou da ajuda da irmã, Lúcia, que assinou os termos de responsabilidade.
Elisabeth nasceu em casa, e ninguém se preocupou em fazer o registro. A mãe, Geralda, também não tinha certidão de nascimento, o que dificultou mais a obtenção do documento da criança. A irmã de Elisabeth, Lúcia, é filha de outro casamento do pai.
Dirce da Silva, uma tia de Elisabeth que presenciou o nascimento da menina, foi contando os anos na memória. "Faz 23 anos e eu me lembro como se fosse hoje. A falecida [mãe de Elisabeth" sempre quis uma certidão e nunca conseguiu. Morreu e virou indigente, coitada", diz a tia.

Sem emprego
A artesã e seus filhos são personagens de um Brasil onde miséria e ignorância se misturam. Sobrevivem sem existir legalmente, dependendo de parentes para qualquer atividade formal.
Elisabeth diz que não consegue emprego porque ninguém contrata gente sem um documento sequer. Também não consegue matricular os filhos na escola, porque eles não têm certidão de nascimento.
Ganha R$ 3 por centena de pulseiras que fabrica, revendidas para um estrangeiro que contrata mão-de-obra no bairro, e consegue tirar até R$ 8 por semana. Do ex-marido, que deixou o barraco há uma semana, recebe um pouco de dinheiro para os filhos. Parentes e vizinhos também ajudam.
Seu estoque de comida se resume a duas cestas básicas, doadas pela igreja e pela campanha Natal sem Fome, da Ação da Cidadania contra a Fome.
"Aqui o que não falta é gente sem documento, inclusive casos graves, gente que não tem nem certidão", afirma a coordenadora do comitê Servas do Senhor da Ação da Cidadania, Edir Darieux.
No barraco de pedaços de madeira e chão de barro, um cachorro disputa restos de comida com o gato. Moscas rondam as crianças e sobrevoam pedaços de carne posta ao ar livre para salgar.
O garoto mais novo, Patrick, 2, está com bronquite e respira com dificuldade. Chora. Elisabeth mandou sua outra filha, Janaína, 6, para ser criada pela madrinha. Os irmãos maiores, Aline, 3, e Edson, 7, se divertem com as visitas. Aline é a mais sorridente e pergunta por Papai Noel. Ao ver um lápis, não sabe utilizá-lo para rabiscar. Mastiga-o, come as pontas, arranca a pintura: "Comi tudo, tia, comi tudo". (FE)


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