São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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DANUZA LEÃO

A salvação (ou a ruína) do amor

Não foi a pílula anticoncepcional a grande responsável pela revolução feminina; também se deve à invenção da secretária eletrônica a liberdade que as mulheres conquistaram para as coisas mais banais, tipo descer rapidinho e ir à padaria comprar um pão e 200 g de presunto sem medo de ele ligar exatamente naquele minuto. Antes, o normal era ficar grudada no telefone, com fome, sede e calor, se fosse o caso, sem coragem nem de entrar no chuveiro, de medo de o telefone tocar e não ouvir a campainha (com direito a de vez em quando tirar o telefone do gancho para ver se estava funcionando).
Olha só a escravidão: apaixonadas, elas não saíam de casa (ele podia ligar) nem podiam se consolar com uma amiga para não ocupar o telefone. E isso era vida?
Era, e mais: um telefone custava caríssimo, era um bem tão real quanto um terreno ou uma casa e declarado no Imposto de Renda. As famílias tinham só um -isso quando tinham- e, para conseguir uma linha, se esperava de 20 a 30 minutos, o que tornava cada ligação preciosa. Quem nunca teve um carpinteiro ou eletricista cujo número do telefone vinha acompanhado de um "por favor"? Era o telefone do vizinho, que dava os recados "por favor", lembra?
Nesse tempo se entrava em casa perguntando, antes de dizer um oi, "alguém me ligou?". Se a empregada respondia sim, vinha logo o complemento: "voz de homem ou de mulher?". Como a maioria das empregadas não sabia ler nem escrever, os recados não eram anotados, e freqüentemente elas esqueciam o nome de quem havia ligado. Aí, começava o stress: teria sido ele? Como saber? E se fosse e ele não ligasse nunca mais? Detalhe: se alguém ousasse ocupar o telefone por mais de dois minutos a qualquer hora do dia ou da noite, havia sempre uma voz vinda das trevas gritando "olha esse telefone".
As coisas foram mudando, e foi uma verdadeira revolução quando surgiu a secretária eletrônica e mais tarde o bip da secretária; de onde estivesse, se podia checar todos os recados (se ele tinha ligado, aliás, que era só o que interessava). Só a partir daí se tinha tranqüilidade para namorar outro; ou porque o primeiro já estava totalmente seduzido ou por vingança, se ele tivesse sumido. Só que as coisas mudaram mais ainda, e o que era a grande liberdade virou quase uma camisa-de-força.
Mulher, como todo mundo sabe, passa grande parte da vida esperando pelo telefonema de algum homem: ou porque se conheceram na véspera e ela quer saber a quantas anda o seu poder de sedução, ou porque brigaram, ou por nada.
Quem não teve um dia a necessidade de ligar para o homem de sua vida do momento para saber se ele está em casa? E ligar para a vadia para tentar saber se eles estão juntos talvez? Mas também não pode, e pela mesma razão: o tal do bina, verdadeiro dedo-duro eletrônico, entrega quem ligou, oh mundo.
Por um lado é bom: quando os homens (e mulheres) saem do trabalho correndo para dar uma rápida namoradinha, não precisam se apressar: com o celular, todos podem ser encontrados a qualquer hora em qualquer lugar e inventar qualquer mentira: que está no trânsito, no estacionamento, no hospital, fazendo um programa cultural com o chefe.
Por esse ponto de vista é ótimo, mas não é justo: afinal, não se pode mais trair em paz?


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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