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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Também" e "somente"

Dia desses, ao voltar de uma viagem aérea, presenciei uma cena interessante. Terminada a aterragem e iniciada a operação de desembarque, a aeromoça fez este anúncio: "Para seu conforto, o desembarque também poderá ser feito pela porta traseira da aeronave".
Incontinenti e em voz alta (talvez porque quisesse ser ouvido pela aeromoça), um passageiro, que já estava em pé, comentou com a pessoa que o acompanhava: "É melhor colocar o "também" em outro lugar". E emendou, com ênfase no "também": "O desembarque poderá ser feito também pela porta traseira".
Em seguida, a fila começou a andar. Quando me viu (eu estava sentado na última fileira), o passageiro que fez o comentário abriu um sorriso e disse: "Professor, juro que eu não tinha visto o senhor". E ele de fato não podia ter visto, já que estava razoavelmente longe de mim.
O que se seguiu foi uma verdadeira mesa-redonda sobre o assunto, com a participação de todos os que se espremiam no exíguo corredor do avião.
É claro que a observação daquele passageiro faz sentido. Tomada ao pé da letra, a frase da aeromoça permite a interpretação de que, além do desembarque, outra coisa pode ser feita pela porta traseira.
O fato é que a bendita palavra "também" é um terror. Com ela, qualquer descuido basta para o duplo sentido dar o ar da graça, ou -pior- para que a frase não tenha o sentido desejado.
Dependendo do contexto, uma construção como "Ele também afirmou que o projeto contraria os interesses do povo brasileiro", por exemplo, pode permitir duas interpretações: 1) ele é uma das pessoas que afirmaram que o tal projeto contraria os interesses do povo brasileiro; 2) ele fez pelo menos duas afirmações, entre as quais a de que o projeto contraria os interesses do povo brasileiro.
Se o sentido desejado é o primeiro, é melhor colocar "também" antes de "ele" ("Também ele afirmou que o projeto contraria..."). Se o sentido desejado é o segundo, é melhor colocar "também" depois de "afirmou" ("Ele afirmou também que o projeto...").
Outra palavra perigosa é "somente". No último vestibular da Fuvest, a banca fez uma questão baseada neste aviso, posto ao lado de um caixa eletrônico de um grande banco: "Em caso de dúvida, somente aceite ajuda de funcionário do banco". O candidato tinha de reescrever a frase, "posicionando adequadamente o termo sublinhado, de modo a eliminar a ambiguidade nela existente". É claro que o termo sublinhado era "somente".
O leitor já descobriu qual é o segundo sentido da frase? Vamos lá: em caso de dúvida, a única coisa possível é aceitar ajuda de um funcionário, o que significa, por exemplo, que o usuário não pode desistir de usar o equipamento.
Onde pôr o bendito "somente", afinal? É simples: "Em caso de dúvida, aceite ajuda somente de funcionário do banco". Se você pensou em colocar essa palavrinha depois de "aceite", pare e repense. Que tal? Nessa posição ("Em caso de dúvida, aceite somente ajuda..."), a ambiguidade persistiria, não? É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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