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PASQUALE CIPRO NETO
"Também" e "somente"
Dia desses, ao voltar de
uma viagem aérea, presenciei uma cena interessante. Terminada a aterragem e iniciada a
operação de desembarque, a aeromoça fez este anúncio: "Para
seu conforto, o desembarque também poderá ser feito pela porta
traseira da aeronave".
Incontinenti e em voz alta (talvez porque quisesse ser ouvido pela aeromoça), um passageiro, que
já estava em pé, comentou com a
pessoa que o acompanhava: "É
melhor colocar o "também" em
outro lugar". E emendou, com ênfase no "também": "O desembarque poderá ser feito também pela
porta traseira".
Em seguida, a fila começou a
andar. Quando me viu (eu estava
sentado na última fileira), o passageiro que fez o comentário
abriu um sorriso e disse: "Professor, juro que eu não tinha visto o
senhor". E ele de fato não podia
ter visto, já que estava razoavelmente longe de mim.
O que se seguiu foi uma verdadeira mesa-redonda sobre o assunto, com a participação de todos os que se espremiam no exíguo corredor do avião.
É claro que a observação daquele passageiro faz sentido. Tomada ao pé da letra, a frase da
aeromoça permite a interpretação de que, além do desembarque, outra coisa pode ser feita pela porta traseira.
O fato é que a bendita palavra
"também" é um terror. Com ela,
qualquer descuido basta para o
duplo sentido dar o ar da graça,
ou -pior- para que a frase não
tenha o sentido desejado.
Dependendo do contexto, uma
construção como "Ele também
afirmou que o projeto contraria
os interesses do povo brasileiro",
por exemplo, pode permitir duas
interpretações: 1) ele é uma das
pessoas que afirmaram que o tal
projeto contraria os interesses do
povo brasileiro; 2) ele fez pelo menos duas afirmações, entre as
quais a de que o projeto contraria
os interesses do povo brasileiro.
Se o sentido desejado é o primeiro, é melhor colocar "também"
antes de "ele" ("Também ele afirmou que o projeto contraria...").
Se o sentido desejado é o segundo,
é melhor colocar "também" depois de "afirmou" ("Ele afirmou
também que o projeto...").
Outra palavra perigosa é "somente". No último vestibular da
Fuvest, a banca fez uma questão
baseada neste aviso, posto ao lado de um caixa eletrônico de um
grande banco: "Em caso de dúvida, somente aceite ajuda de funcionário do banco". O candidato
tinha de reescrever a frase, "posicionando adequadamente o termo sublinhado, de modo a eliminar a ambiguidade nela existente". É claro que o termo sublinhado era "somente".
O leitor já descobriu qual é o segundo sentido da frase? Vamos lá:
em caso de dúvida, a única coisa
possível é aceitar ajuda de um
funcionário, o que significa, por
exemplo, que o usuário não pode
desistir de usar o equipamento.
Onde pôr o bendito "somente",
afinal? É simples: "Em caso de dúvida, aceite ajuda somente de
funcionário do banco". Se você
pensou em colocar essa palavrinha depois de "aceite", pare e repense. Que tal? Nessa posição
("Em caso de dúvida, aceite somente ajuda..."), a ambiguidade
persistiria, não? É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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