São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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DANUZA LEÃO

Ainda bem que a paixão não dura


O ideal seria se apaixonar e conservar a cabeça fria, ser capaz de raciocinar e agir com inteligência

VOCÊ CONHECE um homem maravilhoso, naquela idade ideal: nem garotão, nem do lado de lá demais. Os cabelos razoavelmente grisalhos, o corpo um pouquinho encorpado, o que demonstra ser alguém que não tem muito tempo a perder nas academias de ginástica -uma delícia, homem assim.
Com filhos já grandes -Deus seja louvado-, certos riscos você já não corre mais, como o de passar o sábado sozinha porque ele foi levar as crianças ao teatro infantil. Mas sendo praticamente adultos, eles vão encontrar outras maneiras de perturbar, pedindo um carro novo ou um apartamento de frente para o mar. Tudo bem, afinal, você não tem nada a ver com o dinheiro dele -ainda.
Esse homem tão charmoso tem pelo menos uma ex-mulher; reze para que os filhos sejam de uma só, e atenção: poucas paixões resistem a tantas conversas com a mãe -ou as mães- das crianças. E agradeça a Deus por eles serem já crescidos, pois elas querem sempre falar da saúde, do aparelho nos dentes, da aula de natação, do rendimento escolar, do aumento de pensão, e nunca pelo telefone: ex-mulher a-do-ra conversar pessoalmente.
Tendo você seu trabalho, portanto dinheiro para comprar seu uísque, seus discos, seu pacotinho de salmão, sua passagem quando viaja e para dividir a conta no restaurante, não tem nada a ver com isso, mas se irrita. Ele não precisava contar, é claro, mas ficou combinado que numa relação deve-se contar tudo.
Contar tudo, dos pensamentos mais secretos aos desejos mais profundos; ser sincera a ponto de dizer que está precisando ficar sozinha para pensar e saber o que quer da vida. E por acaso é possível escutar da pessoa com quem se vive que ela está precisando de um tempo, ou que precisa encontrar o seu espaço? Muito complicada, essa tal de lealdade.
Houve um tempo em que os casais se enganavam e nenhum dos dois suspeitava do que estava acontecendo. Depois, com a liberdade sexual, ficou combinado que tudo podia, desde que fosse contado -símbolo da mais total lealdade.
Hoje existem homens que dizem "se quiser me trair, tudo bem, contanto que não me conte". É, os tempos mudaram. Difícil, a vida a dois. Ou você se entrega totalmente e passa a viver na dependência do outro, ou mantém sua independência, o direito de sair com os amigos ou companheiros de trabalho uma vez por semana. Essa é a maneira moderna de viver, mas isso é lá possível, entre duas pessoas apaixonadas?
O ideal seria se apaixonar sem se entregar, se apaixonar e conservar a cabeça fria, ser capaz de raciocinar e agir com inteligência em qualquer circunstância. Mas o que tem isso a ver com a paixão?
Paixão -a melhor coisa da vida; mas quem consegue cumprir as funções mais banais, apaixonado, como tomar banho, ir ao supermercado, visitar uma tia, levar uma roupa no tintureiro, sem pensar o tempo todo nele, nele, nele?
Se todos os presidentes de todos os países, os ministros, os cientistas, os médicos, os advogados, os engenheiros, os arquitetos, os banqueiros (esses é menos provável), se, enfim, todas as pessoas do mundo se apaixonassem perdidamente ao mesmo tempo, o mundo ia parar, conseqüentemente, acabar.
Isso só não acontece porque as paixões não duram muito -e ainda bem.
Ainda bem? Mas será mesmo?

danuza.leao@uol.com.br


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