São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

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CRIME E CASTIGO

José Renato Nalini, que preside tribunal criminal, vê conservadorismo, mas rebate crítica a caráter genérico de decisões

Juiz reflete a sociedade, diz desembargador

DA REPORTAGEM LOCAL

Produto de uma sociedade egoísta e de uma academia conservadora, os magistrados brasileiros tendem a usar suas sentenças como instrumento de uma exigida faxina social.
É esse o diagnóstico que faz do Poder Judiciário o presidente do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, José Renato Nalini, 58, defensor de alterações profundas no processo de formação dos juízes. Leia trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.
(SÍLVIA CORRÊA)
 

Folha - Por que quem rouba vai, em geral, para o regime fechado?
José Renato Nalini -
Por que nós trabalhamos com standards consolidados. O que o povo quer em relação à criminalidade? Redução da maioridade penal, pena de morte. E o juiz é um reflexo dessa sociedade. Ele se sente compelido a dar uma resposta.
Essa sociedade é egoísta e hedonista. Não quer sofrimento, não quer preocupação. Então, qual é a solução? Tranca. Tranca e, se possível, mata. Por que ninguém se comove com as dezenas de cadáveres no IML? Porque de certa forma achamos que é uma faxina social.

Folha - E as sentenças do Judiciário refletem esse raciocínio?
Nalini -
Também, claro. O juiz tem uma espécie de intuição messiânica. Ele pensa: "Faço Justiça. Limpo a sociedade". Tem uma coisa de quixotismo, de achar que está colaborando para que as coisas não fiquem ainda piores.

Folha - O sr. concorda com isso?
Nalini -
Não, mas sou parte de uma minoria no Judiciário.

Folha - O sr. defende a revisão da Lei de Crimes Hediondos?
Nalini -
Acho que devem rever, sim, e dar mais possibilidade para o juiz liberar ou não algum benefício. Mas para isso devem investir na formação dele. O juiz criminal tem de saber dimensionar as conseqüências de suas decisões.

Folha - Ele não sabe?
Nalini -
Nem sempre. O cidadão sai do bacharelado e entra numa imersão de decorar. Decora tudo e vira juiz. Quem é que me garante que ele é sensível e tem noções de ética? Quem é que me garante que ele se sente um agente transformador e não um burocrata aplicador inflexível da lei?

Folha - A pesquisa do IDDD mostra que os juízes ignoram as circunstâncias específicas de cada crime ao fixar o regime de cumprimento da pena, adotando argumentos genéricos sobre a violência nas grandes cidades para justificar a escolha pelo sistema mais rígido. Isso não é um artifício extralegal?
Nalini -
Não. O tipo penal é subtrair coisa alheia com violência ou grave ameaça. É a lei que dá a ele essa generalidade. O processo judicial é assim, uma coisa mecânica e repetitiva. Você precisa pensar o seguinte: a criminalidade é muito maior do que a que chega ao Judiciário. Das milhares de ocorrências da Polícia Civil, centenas viram inquéritos e só dezenas geram denúncia.
Então, quando algo passou por esse filtro já é uma coisa comprovada, certo? Vai falar o que do sujeito que bate, ameaça, empurra e subtrai uma coisa? Aí o juiz tende a ver um videoteipe: mais um, mais um, mais um. E quem já começa no crime com um roubo denota mesmo certa periculosidade.

Folha - O sr., então, acha que o juiz pode fundamentar sua decisão dizendo que o roubo, por si só, revela a periculosidade do sujeito?
Nalini -
O juiz precisa fundamentar, mas isso não quer dizer que ele deva ser criativo e original. O que mais se pode dizer de um roubo além de que é terrível?
O juiz tem um standard na consciência dele. No fundo é isso. Subtração com violência e grave ameaça. O que mais de originalidade você vai encontrar nisso? Eu, juiz, já tenho aquele estereótipo de que ele é perigoso e, portanto, esse sujeito não pode ficar no meu convívio.

Folha - Mas alguns acusados disparam a arma, outros não. Alguns têm referências, família, emprego, filhos, outros não.
Nalini -
Sei. Mas você presta atenção à história sem muita dedicação, porque o fato já é muito grave. É a primeira vez? Mas por que começou com uma coisa tão grave? É com essa cabeça que o juiz pensa.
Você não pode esquecer que a formação jurídica é a mais conservadora entre aquelas confiadas à universidade. E o Judiciário recruta seus integrantes entre os egressos dessa faculdade. Então, não espere que o juiz seja criativo, inovador e que venha para balançar as estruturas. O juiz é um mantenedor do status quo.


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