São Paulo, quinta-feira, 01 de setembro de 2011

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PASQUALE CIPRO NETO

"Fugi, fugi da mal segura terra..."


Aí os desastres se multiplicam. Os jovens leem "O Uraguai", poema épico de Basílio da Gama, e...

HÁ DUAS SEMANAS, tratei da ambiguidade potencial do pronome possessivo "seu" (e respectivas flexões, isto é, "sua", "seus" e "suas").
O texto terminou assim: "Lembro que o possessivo 'seu' é da terceira pessoa, tanto do singular quanto do plural, ou seja, pode equivaler a 'de você' ou a 'de vocês', a 'do/a senhor/a' ou a 'dos/as senhores/as' etc. Com uma frase como 'Vocês sabem bem que o seu lugar é aqui' um falante pode querer dizer que o lugar em questão é dos interlocutores dele, mas, em sã consciência, pouca gente diria isso hoje, não? No lugar do possessivo 'seu' provavelmente surgiria 'vosso' ou 'de vocês': 'Vocês sabem bem que o lugar de vocês (ou 'o vosso lugar') é aqui'".
Não foram poucos os leitores que me perguntaram se não me equivoquei quando citei o pronome possessivo "vosso" ("Vocês sabem bem que o vosso lugar é aqui"). Esses leitores queriam saber se "vosso" e "vocês" não são incompatíveis. Em outras palavras, queriam saber se o possessivo "vosso" não implica o emprego do pronome reto "vós".
De início, é fundamental lembrar que eu me referia ao uso efetivo, ou seja, ao que realmente ocorre na língua viva de hoje, em que é mais do que improvável algo como "Vós sabeis bem que o vosso lugar é aqui".
Em se tratando das variedades formais da língua, a questão muda, sobretudo quando se leva em conta o texto literário clássico. Nesse caso, o pronome possessivo "vosso" de fato ocorre associado ao pronome reto "vós", que, como se sabe, é da segunda pessoa do plural. No entanto, como também se sabe, hoje em dia as segundas pessoas (sobretudo a do plural) não frequentam a aula de língua materna em muitas das nossas escolas. O argumento para essa "expulsão" é mais do que simplório: se a segunda do plural está fora do uso vivo, por que ensiná-la?
Lá vai minha humilde contribuição: o guarda-roupa linguístico deve ser o mais recheado possível. É claro que esse recheio deve incluir formas que não estão no uso vivo, mas vão surgir em textos cuja leitura (ironia das ironias) a universidade exige dos que se candidatam a uma vaga no ensino superior.
Aí os problemas se multiplicam. Os jovens leem, por exemplo, "O Uraguai", poema épico de Basílio da Gama, e trocam alhos por bugalhos. Quer um exemplo? Leia estes versos da obra: "Mas neste tempo um Índio pelas ruas / Com gesto espavorido vem gritando, / Soltos e arrepiados os cabelos: / Fugi, fugi da mal segura terra, / Que estão já sobre nós os inimigos. / Eu mesmo os vi, que descem do alto monte, / E vêm cobrindo os campos; e se ainda / Vivo chego a trazer-vos a notícia, / Aos meus ligeiros pés a vida eu devo".
Que significa a forma verbal "fugi" (de "Fugi, fugi da mal segura terra")? A quem se refere? Quem foge, afinal? Bem, caro leitor, nada de achar que se trata da primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo do verbo "fugir" ("eu fugi"), ou seja, nada de achar que é o narrador que diz que fugiu. Quem diz "fugi" é um índio, que "...vem gritando, / soltos e arrepiados os cabelos". E o que diz ele, ou melhor, o que grita ele? Grita isto: "Fugi, fugi da mal segura terra, que estão já..."
A forma "fugi" é da segunda do plural do imperativo afirmativo, ou seja, seu sujeito é "vós". Essa forma resulta (como todas, com exceção de "sede", do verbo "ser") da eliminação do "s" final da segunda do plural do presente do indicativo ("vós fugis"). Em outras palavras, o índio diz aos que o ouvem que fujam. Se empregasse a terceira do plural, o índio diria "fujam" ("Fujam, fujam da mal segura terra"). É isso.

inculta@uol.com.br


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