São Paulo, quinta-feira, 01 de novembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Só faltam falar"


No padrão formal da língua, não ocorre o registro de construções como "Esses veículos só faltam falar"

ESTAVA NO TÍTULO de uma matéria jornalística sobre engenhocas futuristas do mundo automotivo: "Só faltam falar".
E então, caro leitor, o que falta para quem? Vamos pensar juntos. Suponha o seguinte: um artista canta bem, toca bem seu instrumento, faz arranjos, compõe melodias, mas precisa de um parceiro que lhe escreva as letras (aliás, não são poucos os artistas brasileiros que têm esse perfil: João Bosco, Ivan Lins, Baden Powell, Francis Hime, Edu Lobo...).
Pois bem. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que esses artistas só faltam escrever letras? Que lhe parece?
São eles que faltam escrever letras ou é o dom de escrever letras que lhes falta, que falta a eles, que falta a esses artistas? De acordo com a "lógica" do processo, a opção que expressa o que de fato ocorre é a segunda, não?
O fato é que, em se tratando das variedades formais da língua, não ocorrem construções como "Esses artistas são quase completos; só faltam escrever letras". Em seu lugar, registram-se construções como estas: "Esses artistas são quase completos; só lhes falta escrever letras"; "A esses artistas, quase completos, só falta (o dom de) escrever letras"; "...só falta escreverem letras".
No título jornalístico, são os carros que faltam falar ou é o dom da fala que falta a eles, que lhes falta? Já sabe, não? Na língua padrão, duas das redações possíveis são estas: "Só lhes falta falar"; "Só falta falarem".
Já sei, já sei. Talvez você tenha estranhado a forma "Só falta falarem", já que normalmente se flexiona o primeiro verbo de um par deles ("Devem faltar muitos livros na escola"; "Esses discos só vão chegar amanhã"; "Podem ocorrer fortes pancadas de chuva hoje").
Pois talvez esteja aí o xis do problema. A força do hábito (flexionar o primeiro verbo de um par deles) nos faz crer que a frase do título jornalístico ("Só faltam falar") seja apenas mais um desses casos. Em termos rigorosos, não é. Em "Devem faltar muitos livros na escola", o par "devem faltar" constitui o que se chama de locução verbal -a primeira forma ("devem") é auxiliar, e a segunda ("faltar") é principal. O sujeito da locução "devem faltar" é "muitos livros" (são eles, livros, que devem faltar).
E por que não existe locução verbal em "Só lhes falta falar" ou em "Só falta falarem"? Por uma razão muito simples: no primeiro caso, o sujeito de "falta" é justamente "falar" (é falar o que falta a eles, o que lhes falta); no segundo, o sujeito de "falta" é "falarem" (o que falta é eles falarem). Quem diz ou escreve "Só faltam falar" age como se houvesse aí uma locução verbal, em que a flexão se dá no auxiliar. Esse fenômeno, comum na oralidade e em textos literários (Celso Luft dá exemplos de Jorge Amado, Aníbal Machado e Manuel Bandeira), é o que explica o emprego de formas como a do título jornalístico.
A esta altura, não posso deixar de dizer ao leitor o que diz o próprio Luft (e que endosso): "Em sintaxe culta formal, mantenha-se a sintaxe originária". Isso quer dizer que, embora comuns na oralidade e em registros literários, construções como "Só faltam falar" não freqüentam o padrão formal. Quem quer adequar-se à formalidade deve mesmo optar por "Só falta falarem"; "Só lhes falta falar". É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Operação-padrão causa filas de 2 h em Cumbica
Próximo Texto: Trânsito: Cemitérios terão trânsito monitorado no Dia de Finados
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.