São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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Modelo masculino
vem de líder de rua

AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local

A ausência do pai dentro de casa está levando os jovens a eleger os líderes de grupos da rua como o modelo masculino a ser seguido. Estudo feito em Chicago em bairros pobres controlados por gangues mostra que os "chefões" representam a figura masculina admirada. Nas favelas do Rio, os comandos do tráfico muitas vezes ocupam o lugar do pai ausente.
"Os jovens adotam esses modelos não porque querem ser como os chefes, mas porque recebem deles a proteção que não têm ou não tiveram do pai", afirma Gary Barker, pesquisador do Open Society Institute e um dos autores das pesquisas do Rio e de Chicago.
A "fome do pai", como Barker chama as queixas dos jovens com relação à ausência do pai, não é exclusiva das classes mais pobres nem se restringe à presença física masculina. A socióloga Irene Loewenstein diz que o mesmo ressentimento com o pai vem sendo observado num grupo de terapeutas de família estudado por sua equipe na zona do sul do Rio.
O mesmo estudo qualitativo vem sendo feito com homens das favelas do complexo da Maré, na zona norte do Rio. "Nos dois grupos, são raros os que reportam uma relação positiva com o pai", afirma Irene. "Eles sentem essa ausência, física ou psicológica como uma violência contra eles."
A pesquisa deve durar 18 meses e é realizada pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Escola Nacional de Saúde Pública.
Irene, que participou com Barker de outra pesquisa com jovens cariocas da periferia e de favelas, diz que a figura do líder do grupo é "positivamente vista". "Nas áreas mais pobres, o tráfico representa uma alternativa de poder. Na falta de outro modelo positivo, é natural que os jovens vejam dessa forma." No estudo de Barker em Chicago, que teve conclusões parecidas, 75% dos 40 jovens estudados não tinham o pai em casa.
No plano psicológico, diz o trabalho dos dois, "a presença dos comandos do tráfico e seu controle local tem um impacto profundo nos adolescentes e na formação de suas identidades". Para esses jovens, tornar-se sexualmente ativos e sustentar financeiramente a si próprios e à família eram condições básicas para ser homem.
A dificuldade de conseguir ou se manter no emprego era relatada por esses jovens como um forte motivo de tensão. Muitos deles mencionaram o exemplo de pais que perderam o emprego, começaram a beber e agir com violência contra a mulher e os filhos até que abandonaram a casa.
"É uma trajetória que os jovens entrevistados afirmam que não querem repetir", diz Barker. "Muitos diziam, "eu não quero ser como meu pai'."
Os estudos mostram que os jovens criados sem uma figura masculina tendem a adotar os colegas de rua como substitutos do pai. A mensagem que predomina nessas relações é sempre machista, assim como os líderes das gangues e o comando do tráfico reproduzem uma imagem patriarcal, com o homem mais forte, violento e com mais direitos sobre as mulheres.
Não se trata, no entanto, de culpabilizar os homens, afirmam os pesquisadores. Mas a expectativa de que seja o provedor da família, faz com que perca o direito de ser pai quando está desempregado. "É como se dissessem, "se não tem dinheiro, não tem direito de brincar com as crianças'", afirma Barker. "O pai não é ausente porque quer", diz Irene. "Os papéis estão tão estabelecidos que é difícil sair dessa ausência."



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