|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Presídios, cadeias, o mundo das bestas-feras
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
As bestas-feras são os governadores, os secretários da
Segurança Pública, os secretários estaduais de "assuntos penitenciários", os delegados de
polícia, os juízes-corregedores,
as juízas-corregedoras e nós -
que somos bestas-feras na essência, e nossa arrogância de
classe, nosso egoísmo familial,
nossos laços de sangue, nossa
inteligência curta, nossa postura de hominídeos selvagens,
"apes", macacos, o demônio.
Quem se importa com presos
que matam uns aos outros
diante de câmeras fotográficas, de holofotes de televisão?
Quem se importa se não é seu
pai, seu marido, seu irmão, seu
filho, seu tio, o demônio?
Quem se importa de assistir
pela TV a um preso matando
outro a estiletadas (a lâmina
abrindo a carne em cortes sucessivos, sem intervalo, o sangue pingando), a chutes e pontapés, a queimaduras com tochas de fogo enquanto o homem urra, urra, alto e bom
som feito um animal ferido por
trás das grades? Quem?
Um texto sobre presos é para
fazer matado, seco, sem poesia, sem afeto, sem nenhum
senso moral, sem profundeza
de consciência introspectiva:
deve ter o peso das grades, a
cara assassina do Estado brasileiro, o ar criminoso da indiferença das autoridades.
De nada adianta construir
presídios se não se constroem
homens: consta que os carcereiros vão virando bichos, que
os presos vão virando bichos.
Os presos que vivem amontoados uns sobre os outros nas
cadeias públicas, nos presídios,
nas penitenciárias brasileiras
matam outros para desafogar
o ambiente, matam para mostrar que estão vivos e não são
os bichos que queremos que
eles sejam -e para mostrar
que são, portanto, os bichos
que queremos que eles sejam,
os bichos, as bestas-feras que
somos nós mesmos.
Este texto, o diário inútil, o
diário feio e pedante e presunçoso que é o jornalismo, este
texto é dedicado aos presos
que morreram nas rebeliões de
presídios de São Paulo no mês
de novembro último.
São Paulo, 28 de novembro:
três presos foram mortos a facadas por outros detentos durante rebelião de quatro horas
e meia na Cadeia Pública de
Diadema (Grande SP).
Os assassinatos foram filmados, fotografados, passaram
na televisão. Enquanto esperavam a chegada da juíza-corregedora Cláudia Maria Carbonari de Faria, os presos mataram o primeiro colega. Reclamando da demora da juíza, os
detentos mataram outro preso.
Os mortos foram João Antonio
Hermenegildo, 28, Anderson
Renato Santos, 20, e Pedro
Luiz da Silva.
Orlândia, 27 de novembro:
dois presos foram mortos em
uma rebelião que durou cerca
de duas horas no início da noite, na Cadeia Pública de Orlândia (370 km de São Paulo).
Os dois presos que morreram
haviam tentado matar outro.
Este texto devia ser um poema e devia ter sido lido na hora da morte deles, na hora do
estilete, da tocha de fogo entre
suas pernas:
"E ser levado da rua cheio de
sangue/Sem ninguém saber
quem eu sou!/Ó "tramways',
funiculares, metropolitanos,/Roçai-vos por mim até ao
espasmo!" (Fernando Pessoa)
E-mail: mfelinto@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|