São Paulo, terça, 1 de dezembro de 1998

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Presídios, cadeias, o mundo das bestas-feras

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

As bestas-feras são os governadores, os secretários da Segurança Pública, os secretários estaduais de "assuntos penitenciários", os delegados de polícia, os juízes-corregedores, as juízas-corregedoras e nós - que somos bestas-feras na essência, e nossa arrogância de classe, nosso egoísmo familial, nossos laços de sangue, nossa inteligência curta, nossa postura de hominídeos selvagens, "apes", macacos, o demônio.
Quem se importa com presos que matam uns aos outros diante de câmeras fotográficas, de holofotes de televisão? Quem se importa se não é seu pai, seu marido, seu irmão, seu filho, seu tio, o demônio?
Quem se importa de assistir pela TV a um preso matando outro a estiletadas (a lâmina abrindo a carne em cortes sucessivos, sem intervalo, o sangue pingando), a chutes e pontapés, a queimaduras com tochas de fogo enquanto o homem urra, urra, alto e bom som feito um animal ferido por trás das grades? Quem?
Um texto sobre presos é para fazer matado, seco, sem poesia, sem afeto, sem nenhum senso moral, sem profundeza de consciência introspectiva: deve ter o peso das grades, a cara assassina do Estado brasileiro, o ar criminoso da indiferença das autoridades.
De nada adianta construir presídios se não se constroem homens: consta que os carcereiros vão virando bichos, que os presos vão virando bichos.
Os presos que vivem amontoados uns sobre os outros nas cadeias públicas, nos presídios, nas penitenciárias brasileiras matam outros para desafogar o ambiente, matam para mostrar que estão vivos e não são os bichos que queremos que eles sejam -e para mostrar que são, portanto, os bichos que queremos que eles sejam, os bichos, as bestas-feras que somos nós mesmos.
Este texto, o diário inútil, o diário feio e pedante e presunçoso que é o jornalismo, este texto é dedicado aos presos que morreram nas rebeliões de presídios de São Paulo no mês de novembro último.
São Paulo, 28 de novembro: três presos foram mortos a facadas por outros detentos durante rebelião de quatro horas e meia na Cadeia Pública de Diadema (Grande SP).
Os assassinatos foram filmados, fotografados, passaram na televisão. Enquanto esperavam a chegada da juíza-corregedora Cláudia Maria Carbonari de Faria, os presos mataram o primeiro colega. Reclamando da demora da juíza, os detentos mataram outro preso. Os mortos foram João Antonio Hermenegildo, 28, Anderson Renato Santos, 20, e Pedro Luiz da Silva.
Orlândia, 27 de novembro: dois presos foram mortos em uma rebelião que durou cerca de duas horas no início da noite, na Cadeia Pública de Orlândia (370 km de São Paulo). Os dois presos que morreram haviam tentado matar outro.
Este texto devia ser um poema e devia ter sido lido na hora da morte deles, na hora do estilete, da tocha de fogo entre suas pernas:
"E ser levado da rua cheio de sangue/Sem ninguém saber quem eu sou!/Ó "tramways', funiculares, metropolitanos,/Roçai-vos por mim até ao espasmo!" (Fernando Pessoa)


E-mail: mfelinto@uol.com.br



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