São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2009

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MOACYR SCLIAR

O dia seguinte


Não queria saber o que tinha acontecido. Fez a mala, foi para o aeroporto e conseguiu um voo para aquele mesmo dia


 

Além da tradicional dupla, cerveja e espetinho, um bar em Maceió (AL) oferecia no cardápio unidades da pílula do dia seguinte, que só pode ser vendida com prescrição. Cotidiano, 21 de janeiro de 2009

A OS 35 ANOS ela conseguiu finalmente realizar seu sonho: conhecer a bela capital de Alagoas, cidade da qual sua família era originária, e que sempre estivera presente em seus sonhos. Foi sozinha. Sozinha sempre vivera, sozinha realizara as poucas viagens que lhe permitiam seus módicos ganhos de funcionária pública. Mas isso pouco lhe importava: estava acostumada a viver sem companhia e sabia perfeitamente como fazê-lo.
Chegou, hospedou-se num modesto hotel e saiu imediatamente para conhecer Maceió, que era um deslumbramento: andou horas pelas praias, olhando extasiada aquele mar belíssimo e os banhistas que ali se divertiam. À tardinha sentiu fome e entrou num pequeno bar para comer alguma coisa. E ali teve duas surpresas.
A primeira estava no cardápio, no qual figurava, além de bebidas e quitutes diversos, um item que para ela foi um choque: a pílula do dia seguinte. Sim, ela sabia o que era a pílula do dia seguinte: um medicamento para ser usado em emergências, como estupros ou rompimento do preservativo, a fim de evitar a gravidez. Situações pelas quais nunca passara, pela simples razão de que era virgem.
Coisa que as poucas amigas não entendiam: você não é feia, diziam, você é uma mulher simpática, por que é que você não arranja homem? Pergunta para a qual não tinha resposta. O certo, porém, é que não precisava usar anticoncepcionais. O que era uma evidência de seu fracasso como mulher.
-Às suas ordens, disse alguém. Era o garçom que ali estava, diante dela. Um homem jovem, absurdamente bonito, o homem capaz de despertar paixões avassaladoras em qualquer mulher. E então algo aconteceu. Algo que ela só podia explicar pelo fato de estar longe de casa, e longe de suas inibições. -Eu queria a pílula do dia seguinte, disse. Fez uma pausa e acrescentou com um sorriso: -E queria ter um motivo para usar a pílula do dia seguinte.
O rapaz não era tolo. Provavelmente aquela não era a primeira turista sequiosa de sexo que encontrava. Baixando a voz, explicou que teria de trabalhar até a meia-noite, mas que depois estaria livre. Tudo o que ela precisava fazer era dar-lhe o endereço do hotel.
Ela recebeu a pílula, pagou (preço absurdo) e voltou para o hotel. Colocou o seu vestido mais sedutor, maquiou-se cuidadosamente e ficou à espera do príncipe encantado. Que nunca apareceu. Meia-noite, uma hora, duas horas -não apareceu. Cansada, acabou adormecendo. Sozinha, como de hábito. Poderia ter voltado ao bar no dia seguinte para descobrir o que tinha acontecido. Talvez algum imprevisto, talvez um assalto... Talvez outra turista sequiosa por usar a pílula do dia seguinte.
Mas na verdade não queria saber o que tinha acontecido. Fez a mala, foi direto para o aeroporto e conseguiu um voo para aquele mesmo dia. Estava voltando para casa, para a sua rotineira vidinha. Mas levava consigo algo que agora representava a melancólica e frustrada promessa de um sonho: uma pílula do dia seguinte.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha



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