São Paulo, segunda-feira, 02 de março de 2009

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MOACYR SCLIAR

O texto misterioso


É a dúvida que o atormenta e que é a causa de uma insônia resistente; insônia que só lhe aumenta o sofrimento

 
Escritores consagrados repudiam falsos textos que circulam na rede. Pasquale Cipro Neto, colunista da Folha, afirma que sempre recebe elogios por um texto que não escreveu. Informática, 25 de fevereiro de 2009 Enquanto dormia, uma norte-americana de 44 anos, sonâmbula, acessou sua conta de e-mail e enviou a amigos um texto. Médicos especialistas afirmam que o caso é raro e pode ter sido causado por medicamentos. Informática, 25 de fevereiro de 2009

COLUNISTA de um pequeno jornal de bairro, ele já estava resignado a uma carreira modesta, sem muita repercussão, sem muitas glórias. Mas um dia teve uma surpresa: um amigo que encontrou na rua cumprimentou-o efusivamente por uma belíssima crônica que, assinada por ele, estava circulando na internet, com o sugestivo título de "O texto misterioso". A surpresa era mais que explicável: ele simplesmente nunca tinha escrito nada chamado "O texto misterioso".
Mas o amigo mostrava-se tão entusiasmado que não teve coragem de desfazer aquela ilusão. Aceitou, pois, os cumprimentos e seguiu adiante. Na esquina, encontrou outro amigo que também saudou-o pela crônica. E um terceiro, um quarto. Àquela altura já estava intrigadíssimo. Precisava ir ao jornal, mas em vez disto, voltou para casa e entrou na internet. Lá estava "O texto misterioso". Ao lê-lo, teve um choque.
O texto era muito bom. E era um texto que ele poderia sim, ter escrito, mas só num momento de inusitada inspiração, uma inspiração que há muito tempo o abandonara. Mas... Será que não tinha mesmo redigido aquele texto? Porque, ainda que remotamente, as palavras pareciam-lhe familiares. Davam-lhe uma sensação de déjà vu, de coisa que tinha visto antes -na tela de seu computador, seria possível aquilo?
Inquieto, tornou a sair, encontrou outros amigos, recebeu mais cumprimentos. O diretor do jornal para o qual escrevia foi muito efusivo, ainda que mostrasse certo ressentimento: para nós você não escreve tão bonito, disse, ressentido.
Àquela altura a angústia se apossara dele. Quem, afinal, teria escrito "O texto misterioso"? Precisava encontrar essa pessoa, descobrir porque usara o nome dele. Mas nada é mais anônimo que um texto de internet. Ele não sabia nem por onde iniciar a busca Foi então que leu a notícia sobre a sonâmbula que, dormindo, enviara um texto a amigos. O que mais lhe chamou a atenção foi o comentário de especialistas segundo o qual a mulher poderia ter feito aquilo sob a ação de medicamentos. Ora, ele também estava tomando um medicamento, um novo sonífero; e a pergunta agora lhe ocorria, insistente: teria sido ele o autor do texto que deliciara tanta gente? Poderia ter o comprimido mobilizado a agora oculta vocação literária?
Essa é a dúvida que o atormenta e que é a causa de uma insônia resistente a qualquer sonífero. Insônia que só lhe aumenta o sofrimento. Teme que um novo texto apareça, com sua assinatura, algo ainda melhor que "O texto misterioso", mas que definitivamente não terá sido escrito por ele. Isso liquidará suas últimas esperanças de transformar-se num gênio literário.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha



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