São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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ATRAVÉS DO TEMPO

Após 27 anos no presídio, ex-detento que inspirou personagens de filme se adapta à vida em liberdade

Monarca do Carandiru vende água na rua

JOÃO WAINER
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO

ANDRÉ CARAMANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

O Galaxie e o Maverick, da Ford, o Passat e o Fusca, da Volkswagen, eram carrões da moda quando José Isabel da Silva Filho, o Monarca, então com 24 anos de idade, foi levado do 43º DP (Cidade Ademar) para o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, no Carandiru (zona norte).
Era manhã de 27 de novembro de 1975 e o ator egípcio Omar Sharif, célebre por atuar em "Doutor Jivago" e "Lawrence da Arábia", havia chegado ao Rio de Janeiro para um torneio de bridge (jogo de baralho).
Além de estar triste porque Vicente Matheus, folclórico presidente do seu Corinthians, ainda em crise por amargar um jejum de mais de duas décadas sem conquistar títulos, havia proibido o médio-volante Russo de bater pênaltis, Silva Filho pensava em como se livrar das acusações de roubo que pesavam contra ele.
O coronel Erasmo Dias era o secretário da Segurança Pública do Estado e a "linha dura" prevalecia. Os cinemas do centro de São Paulo exibiam "Cidade Violenta", um dos filmes em que Charles Bronson consolidou sua fama de "monstro de Hollywood".
Casado e pai de cinco filhos, Silva Filho era ladrão na zona sul de São Paulo, onde, a seu modo, "fazia a cena" com um revólver na mão para roubar carros -Fuscão, DKW, Opala, Corcel e Chevette eram os seus preferidos- e entregadores (principalmente os de cargas de cigarro). Ao chegar ao Carandiru, Monarca estava convicto de que ficaria pouco tempo na prisão.
Enganou-se profundamente e, depois de condenado a 52 anos, por 13 roubos, só deixou a prisão após 27 anos, quando ela foi desativada, em 2002. Os quase 10 mil dias (algo perto das 240 mil horas) que passou no local fizeram de Monarca, hoje com 55 anos, um dos presidiários mais conhecidos de São Paulo.
Sua vida foi fonte de inspiração para a criação de personagens no livro "Estação Carandiru" (1999), do médico e colunista da Folha Drauzio Varella. Também inspirou três personagens -os "detentos" Majestade, Seu Chico e Nego Preto- do filme "Carandiru" (2003), adaptação do livro para o cinema feita pelo diretor Hector Babenco (veja quadro nesta página).
Antes de conseguir, em 19 de janeiro de 2005, a progressão de pena para o regime de liberdade condicional, Monarca ainda passou pela penitenciária de Serra Azul (337 km de SP), construída especialmente para os detentos da terceira idade.
"Entrei jovem e saí tiozinho da cadeia", relembra ele, e por outras três que funcionam em regime semi-aberto (o detento pode trabalhar de dia e volta à noite para dormir no presídio).
Como foi solto dez meses antes de completar o limite de 30 anos de reclusão, que é o máximo permitido pela Justiça, Monarca terá de ir ao Conselho Penitenciário de São Paulo todos os meses até março de 2026, para carimbar uma carteira que atesta o seu cumprimento de pena em regime de liberdade condicional.
"Seria menos pior ter ficado os 30 [anos] e, hoje, poder ter a ficha limpa na hora de procurar um trabalho. Será que a Justiça não percebe o quanto isso me prejudica, pois tenho de ir ao fórum todo mês?", afirma Monarca, cujo apelido é uma corruptela do nome da fábrica de bicicletas Monark. "Ganhei o apelido porque gostava muito de andar de bicicleta."

Filhos
Após ter perdido três dos cinco filhos -um aos 7 anos de vida, atropelado; outro aos 18, por envolvimento com drogas; e uma moça de 23, vítima de pneumonia- e ter acompanhado sete Copas do Mundo atrás das grades (1978, 1982, 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002), Monarca vive hoje dos cerca de R$ 10 ou R$ 15 que ganha diariamente com a venda de água em um semáforo da avenida Washington Luís, bem ao lado do aeroporto de Congonhas (zona sul de São Paulo).
Todas as manhãs, principalmente quando a temperatura está alta, Monarca divide espaço no semáforo com garotos que também ganham a vida por ali.
"Sempre quando vou dormir torço para que amanheça calor, pois aí consigo vender a minha água. É bom demais estar em contato com as pessoas, trabalhando", diz Monarca, que, invariavelmente, trabalha sorrindo.
"A cadeia me fez aprender a aceitar as coisas com as quais não podia lutar. É a mesma coisa que estar enterrado com areia até o pescoço e não poder olhar para os lados, só para frente. Foi assim que tentei, longe de casa, superar a morte dos meus filhos. Agi errado por um segundo e demorei 29 anos para poder reparar esse erro, para voltar. Hoje, quero ser exemplo para os meus netos, exatamente como não fui para os meus filhos", fala ele, que tem oito netos e vive com a mesma mulher com quem se casou antes de ser preso.
"A minha mulher tirou todo esse tempo de cadeia ao meu lado. Até hoje, tenho de agüentar as brincadeiras que ela faz comigo, pois, quando fui preso, disse que ela não era obrigada a me esperar por tanto tempo, que ela poderia seguir a vida e cuidar dos nossos filhos como achasse melhor, mas ela não me abandonou nunca e cumpriu a promessa de me esperar aqui fora", conta Monarca.

Corinthians
Quando não está vendendo água, Monarca gosta de visitar os parques de São Paulo e de ir aos locais que ficaram esquecidos durante o tempo em que esteve preso. Fanático pelo Corinthians, já foi ao estádio ver o time jogar e, hoje, sonha com a conquista da Libertadores da América.
"Quem não esteve na prisão não sabe o quanto é bom poder levantar cedo, ir trabalhar, voltar, tomar banho, andar de ônibus. Acordar de madrugada e sair no portão para tomar um vento na cara, essas coisas simples", diz, emocionado, Monarca.
Mesmo em liberdade, "o sábio do Carandiru", como se referiu Varella a Monarca, ainda lembra dos números pelos quais foi tratado durante anos: "85.804 era o meu prontuário e 80.864 a minha matrícula no sistema [prisional]". "Durante anos e anos da minha vida, esses números eram os meus nomes. Lá, para o Estado, eu não era o José Isabel."
Monarca diz que não quer mais ser chamado pelo apelido "porque quer escrever outra história". "Que história eu escrevi? Dos 24 anos aos cinqüenta e poucos, meu currículo não existe", diz ele.

Sobrevivente do massacre
Assim como em uma das cenas de "Carandiru", vivida pelo personagem "Nego Preto", interpretado pelo ator Ivan de Almeida, Monarca estava no pavilhão 9 quando, em 2 de outubro de 1992, depois de uma briga de presos, a Polícia Militar invadiu o local e matou 111 detentos, no episódio que ficou conhecido como massacre do Carandiru.
"Naquele dia [2 de outubro], quem levantou a cabeça para olhar para os PMs com certeza foi morto, não ficou para contar o que viu. Quando o outro dia amanheceu, dei graças a Deus por estar vivo. Esperava uma surra coletiva, nunca aquela quantidade de mortes, aquele tanto de sangue que vi", fala Monarca.
"Só por que era preso podia morrer matado? Preso não tem mãe, pai, filho, sangue?", diz ele, ao comentar a recente absolvição na Justiça do atual deputado estadual Ubiratan Guimarães (PTB), o coronel da PM que coordenou a invasão do pavilhão 9.
No filme, para não ser morto, Nego Preto diz ao PM que aponta uma arma para sua cabeça que é "do esporte". Entre 1990 e 1992, Monarca foi o presidente da Fifa (Federação Interna de Futebol Amador), a organização que os detentos criaram para que os campeonatos de futebol do Carandiru pudessem acontecer.
"Lá [na prisão] não tinha juiz ladrão, não! E ninguém xingava a mãe de ninguém também", relembra Monarca, que nunca quis assistir ao filme de Babenco, "porque vivi tudo aquilo da maneira mais real possível e o filme é ficção, com várias coisas que os presos nunca fariam", explica.


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