|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ATRAVÉS DO TEMPO
Após 27 anos no presídio, ex-detento que inspirou personagens de filme se adapta à vida em liberdade
Monarca do Carandiru vende água na rua
JOÃO WAINER
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO
ANDRÉ CARAMANTE
DA REPORTAGEM LOCAL
O Galaxie e o Maverick, da Ford,
o Passat e o Fusca, da Volkswagen, eram carrões da moda quando José Isabel da Silva Filho, o
Monarca, então com 24 anos de
idade, foi levado do 43º DP (Cidade Ademar) para o pavilhão 9 da
Casa de Detenção de São Paulo,
no Carandiru (zona norte).
Era manhã de 27 de novembro
de 1975 e o ator egípcio Omar
Sharif, célebre por atuar em
"Doutor Jivago" e "Lawrence da
Arábia", havia chegado ao Rio de
Janeiro para um torneio de bridge
(jogo de baralho).
Além de estar triste porque Vicente Matheus, folclórico presidente do seu Corinthians, ainda
em crise por amargar um jejum
de mais de duas décadas sem conquistar títulos, havia proibido o
médio-volante Russo de bater pênaltis, Silva Filho pensava em como se livrar das acusações de roubo que pesavam contra ele.
O coronel Erasmo Dias era o secretário da Segurança Pública do
Estado e a "linha dura" prevalecia. Os cinemas do centro de São
Paulo exibiam "Cidade Violenta",
um dos filmes em que Charles
Bronson consolidou sua fama de
"monstro de Hollywood".
Casado e pai de cinco filhos, Silva Filho era ladrão na zona sul de
São Paulo, onde, a seu modo, "fazia a cena" com um revólver na
mão para roubar carros -Fuscão, DKW, Opala, Corcel e Chevette eram os seus preferidos- e
entregadores (principalmente os
de cargas de cigarro). Ao chegar
ao Carandiru, Monarca estava
convicto de que ficaria pouco
tempo na prisão.
Enganou-se profundamente e,
depois de condenado a 52 anos,
por 13 roubos, só deixou a prisão
após 27 anos, quando ela foi desativada, em 2002. Os quase 10 mil
dias (algo perto das 240 mil horas)
que passou no local fizeram de
Monarca, hoje com 55 anos, um
dos presidiários mais conhecidos
de São Paulo.
Sua vida foi fonte de inspiração
para a criação de personagens no
livro "Estação Carandiru" (1999),
do médico e colunista da Folha
Drauzio Varella. Também inspirou três personagens -os "detentos" Majestade, Seu Chico e
Nego Preto- do filme "Carandiru" (2003), adaptação do livro para o cinema feita pelo diretor Hector Babenco (veja quadro nesta
página).
Antes de conseguir, em 19 de janeiro de 2005, a progressão de pena para o regime de liberdade
condicional, Monarca ainda passou pela penitenciária de Serra
Azul (337 km de SP), construída
especialmente para os detentos da
terceira idade.
"Entrei jovem e saí tiozinho da
cadeia", relembra ele, e por outras
três que funcionam em regime semi-aberto (o detento pode trabalhar de dia e volta à noite para
dormir no presídio).
Como foi solto dez meses antes
de completar o limite de 30 anos
de reclusão, que é o máximo permitido pela Justiça, Monarca terá
de ir ao Conselho Penitenciário de
São Paulo todos os meses até março de 2026, para carimbar uma
carteira que atesta o seu cumprimento de pena em regime de liberdade condicional.
"Seria menos pior ter ficado os
30 [anos] e, hoje, poder ter a ficha
limpa na hora de procurar um
trabalho. Será que a Justiça não
percebe o quanto isso me prejudica, pois tenho de ir ao fórum todo
mês?", afirma Monarca, cujo apelido é uma corruptela do nome da
fábrica de bicicletas Monark. "Ganhei o apelido porque gostava
muito de andar de bicicleta."
Filhos
Após ter perdido três dos cinco
filhos -um aos 7 anos de vida,
atropelado; outro aos 18, por envolvimento com drogas; e uma
moça de 23, vítima de pneumonia- e ter acompanhado sete Copas do Mundo atrás das grades
(1978, 1982, 1986, 1990, 1994, 1998
e 2002), Monarca vive hoje dos
cerca de R$ 10 ou R$ 15 que ganha
diariamente com a venda de água
em um semáforo da avenida
Washington Luís, bem ao lado do
aeroporto de Congonhas (zona
sul de São Paulo).
Todas as manhãs, principalmente quando a temperatura está
alta, Monarca divide espaço no
semáforo com garotos que também ganham a vida por ali.
"Sempre quando vou dormir
torço para que amanheça calor,
pois aí consigo vender a minha
água. É bom demais estar em contato com as pessoas, trabalhando", diz Monarca, que, invariavelmente, trabalha sorrindo.
"A cadeia me fez aprender a
aceitar as coisas com as quais não
podia lutar. É a mesma coisa que
estar enterrado com areia até o
pescoço e não poder olhar para os
lados, só para frente. Foi assim
que tentei, longe de casa, superar
a morte dos meus filhos. Agi errado por um segundo e demorei 29
anos para poder reparar esse erro,
para voltar. Hoje, quero ser exemplo para os meus netos, exatamente como não fui para os meus
filhos", fala ele, que tem oito netos
e vive com a mesma mulher com
quem se casou antes de ser preso.
"A minha mulher tirou todo esse tempo de cadeia ao meu lado.
Até hoje, tenho de agüentar as
brincadeiras que ela faz comigo,
pois, quando fui preso, disse que
ela não era obrigada a me esperar
por tanto tempo, que ela poderia
seguir a vida e cuidar dos nossos
filhos como achasse melhor, mas
ela não me abandonou nunca e
cumpriu a promessa de me esperar aqui fora", conta Monarca.
Corinthians
Quando não está vendendo
água, Monarca gosta de visitar os
parques de São Paulo e de ir aos
locais que ficaram esquecidos durante o tempo em que esteve preso. Fanático pelo Corinthians, já
foi ao estádio ver o time jogar e,
hoje, sonha com a conquista da
Libertadores da América.
"Quem não esteve na prisão não
sabe o quanto é bom poder levantar cedo, ir trabalhar, voltar, tomar banho, andar de ônibus.
Acordar de madrugada e sair no
portão para tomar um vento na
cara, essas coisas simples", diz,
emocionado, Monarca.
Mesmo em liberdade, "o sábio
do Carandiru", como se referiu
Varella a Monarca, ainda lembra
dos números pelos quais foi tratado durante anos: "85.804 era o
meu prontuário e 80.864 a minha
matrícula no sistema [prisional]".
"Durante anos e anos da minha
vida, esses números eram os
meus nomes. Lá, para o Estado,
eu não era o José Isabel."
Monarca diz que não quer mais
ser chamado pelo apelido "porque quer escrever outra história".
"Que história eu escrevi? Dos 24
anos aos cinqüenta e poucos, meu
currículo não existe", diz ele.
Sobrevivente do massacre
Assim como em uma das cenas
de "Carandiru", vivida pelo personagem "Nego Preto", interpretado pelo ator Ivan de Almeida,
Monarca estava no pavilhão 9
quando, em 2 de outubro de 1992,
depois de uma briga de presos, a
Polícia Militar invadiu o local e
matou 111 detentos, no episódio
que ficou conhecido como massacre do Carandiru.
"Naquele dia [2 de outubro],
quem levantou a cabeça para
olhar para os PMs com certeza foi
morto, não ficou para contar o
que viu. Quando o outro dia amanheceu, dei graças a Deus por estar vivo. Esperava uma surra coletiva, nunca aquela quantidade de
mortes, aquele tanto de sangue
que vi", fala Monarca.
"Só por que era preso podia
morrer matado? Preso não tem
mãe, pai, filho, sangue?", diz ele,
ao comentar a recente absolvição
na Justiça do atual deputado estadual Ubiratan Guimarães (PTB),
o coronel da PM que coordenou a
invasão do pavilhão 9.
No filme, para não ser morto,
Nego Preto diz ao PM que aponta
uma arma para sua cabeça que é
"do esporte". Entre 1990 e 1992,
Monarca foi o presidente da Fifa
(Federação Interna de Futebol
Amador), a organização que os
detentos criaram para que os
campeonatos de futebol do Carandiru pudessem acontecer.
"Lá [na prisão] não tinha juiz ladrão, não! E ninguém xingava a
mãe de ninguém também", relembra Monarca, que nunca quis
assistir ao filme de Babenco, "porque vivi tudo aquilo da maneira
mais real possível e o filme é ficção, com várias coisas que os presos nunca fariam", explica.
Texto Anterior: Há 50 anos: Sultão do Marrocos visitará a Espanha Próximo Texto: Drauzio Varella diz que preso era sábio na cadeia Índice
|