São Paulo, sábado, 2 de maio de 1998

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LETRAS JURÍDICAS
Sérgio e Luís

WALTER CENEVIVA
da equipe de articulistas


As leis são regras hipotéticas, de aplicação geral, mas sempre referíveis ao ser humano, sua vida e seus atos. Por isso mesmo, certos eventos levam à especial valoração das pessoas envolvidas quando pensadas em face da lei. É o caso das mortes de Sérgio Motta e Luís Eduardo Magalhães, cujos efeitos políticos foram discutidos, sem muita cerimônia, desde os velórios e cujas consequências -e, melhor ainda, cujas pertinências- jurídicas são transponíveis para o plano constitucional, com maior serenidade.
Em face da Constituição, as mortes do ministro e do deputado sugerem a reavaliação do importante papel que ambos vinham tendo no Estado Democrático de Direito, indicado no artigo 1º da Carta, no qual os atores do entendimento entre contrários são essenciais, permitindo aos mais habilidosos e qualificados a condição de líderes de suas correntes.
Nem sempre o povo compreende o aperto de mão dos contrários. Mas é e deve ser assim no pluralismo político de nosso regime constitucional, que o inclui entre os fundamentos da democracia nacional, no inciso 5 do artigo 1º. A livre e harmônica existência comum de mais de uma corrente de pensamento partidário caracteriza o pluralismo político. Aquilo que é genérica hipótese constitucional ganha vida e se aquece no esforço de preenchimento dos espaços deixados com a morte de duas figuras tão diversas como o ministro e o deputado.
Parece razoável dizer que a amplitude maior da hipótese nasce com a plena liberdade na criação, fusão, incorporação e extinção dos partidos (artigo 17 da Carta), preservados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais.
Retomando os últimos anos da vida de Luís Eduardo e de Sérgio verifica-se, porém -e, certamente, não por culpa deles-, uma quebra na regra constitucional contida no artigo 2º, no qual se lê que os poderes da União são independentes e harmônicos entre si. São no papel. Na realidade o Executivo prepondera. Por isso, o ministro podia ter a força do trator. Exercia uma parte da administração federal, auxiliar direto do presidente da República (artigo 84 da Constituição). É verdade que os ministros são demissíveis segundo o exclusivo juízo do presidente, mas nesse campo o texto constitucional não espelha as influências possíveis. O ministro amigo de longa data, sócio e companheiro do chefe do Executivo, assume qualidades e forças que lhe outorgam especial posição em face dos interlocutores.
Os deputados cumprem a representação de seus eleitores, com inteira liberdade, mas, no Brasil e no mundo, muitos deles são "vereadores federais", ao limitarem sua atenção aos problemas dos núcleos de influência que os elegem.
Claro: a Câmara deve ser uma caixa de ressonância dos problemas nacionais, mas, quanto a esses, são muitos os que preferem votar acompanhando os poucos, providos de liderança natural, a cujo rol restritíssimo Luís Eduardo Magalhães acrescentou seu nome. A negociação entre parlamentares é diversa, na democracia, daquela mantida pelo ministro com os políticos em geral.
O Executivo, controlador dos dinheiros públicos, tem fortíssimo mecanismo de pressão. O do deputado, mesmo da situação, exige mais força de convencimento, mais jogo de cintura.
Tanto a função do ministro quanto a do deputado, porém, exigem uma soma de qualidades (e a dispensa de uma série de defeitos). Daí se poder dizer que os falecimentos de Sérgio Motta e de Luís Eduardo Magalhães ilustraram o reexame das práticas da democracia constitucional. Passada a emoção, a hipótese constitucional retoma seu lugar, para dar lugar às soluções necessárias. Ou possíveis.



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