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São Paulo, segunda-feira, 02 de junho de 2003

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Torturado, comerciante teve crises de choro

DA REPORTAGEM LOCAL

O tambor do revólver gira mais uma vez e o estalo da arma sem projétil, encostada na cabeça, seguido de gargalhadas de adolescentes, mostra que a "roleta russa" é só o começo da agonia. Os dedos das mãos sentem a dor do aperto forte de um alicate. É um alerta de que podem ser arrancados se algo der errado.
São imagens que vêm de repente. Ao recordá-las, o comerciante J., 50, sequestrado e torturado no cativeiro em outubro de 2001, já não chora compulsivamente como fazia meses atrás.
Avisa a mulher e tenta manter o controle. Vence a crise, mas sabe que ela voltará. "Acho que isso nunca sairá da minha cabeça. Já se passou mais de um ano e não dá para esquecer", afirmou J.
O comerciante viveu nove dias em cativeiro. No primeiro, em uma favela em São Paulo, foi torturado durante quase toda a noite. Estava encapuzado, mas supõe que, pela algazarra, seus carcereiros eram adolescentes e usavam drogas. Não eram os mesmos homens armados com metralhadoras que o capturaram.
No segundo dia, mudou de cativeiro e ficou, até a libertação, encapuzado, com os braços amarrados e os pés acorrentados. Emagreceu nove quilos. Foi solto por policias civis da região de Sorocaba (100 km de SP).
Voltou para casa eufórico, mas teve insônia desde a primeira noite. "Achava que meu travesseiro tinha o mesmo cheiro do cativeiro", disse. A insônia continuou, a agonia aumentou e J. passou a ter crises frequentes de choro. "Pensava que qualquer pessoa na rua era um sequestrador."
Tomou calmantes, depois antidepressivos. Nada adiantava. Soube do programa do Hospital das Clínicas que acompanha vítimas de sequestro. Passou três meses fazendo terapia em grupo.
"Entendi que existem pessoas que sofreram mais do que eu, e isso ajuda a gente a superar. Chorei com o depoimento dos outros e choraram com meu depoimento. Somos cúmplices", disse.
J. completou o tratamento de três meses e agora é acompanhado pelo programa do HC. Faz parte da metade do grupo que conseguiu melhorar seu quadro clínico.
Um ano e sete meses depois do sequestro, ele tenta levar uma vida normal. Toma antidepressivos, consegue rir de algumas situações e percebe que alguns de seu atos são explicados pelo que viveu no cativeiro.
Nos 30 quilômetros que faz de carro da casa até o trabalho, ele fica com o telefone celular sempre ligado no viva-voz. Fala com a mulher, com um amigo, com um funcionário ou com o sócio. Tudo para não se sentir sozinho. Ao chegar em casa, a primeira coisa que faz é ficar seminu. "Percebo agora que esse fato tem relação com o fato de ter ficado amarrado e encapuzado tanto tempo."


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