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Torturado, comerciante teve crises de choro
DA REPORTAGEM LOCAL
O tambor do revólver gira mais
uma vez e o estalo da arma sem
projétil, encostada na cabeça, seguido de gargalhadas de adolescentes, mostra que a "roleta russa" é só o começo da agonia. Os
dedos das mãos sentem a dor do
aperto forte de um alicate. É um
alerta de que podem ser arrancados se algo der errado.
São imagens que vêm de repente. Ao recordá-las, o comerciante
J., 50, sequestrado e torturado no
cativeiro em outubro de 2001, já
não chora compulsivamente como fazia meses atrás.
Avisa a mulher e tenta manter o
controle. Vence a crise, mas sabe
que ela voltará. "Acho que isso
nunca sairá da minha cabeça. Já se
passou mais de um ano e não dá
para esquecer", afirmou J.
O comerciante viveu nove dias
em cativeiro. No primeiro, em
uma favela em São Paulo, foi torturado durante quase toda a noite. Estava encapuzado, mas supõe
que, pela algazarra, seus carcereiros eram adolescentes e usavam
drogas. Não eram os mesmos homens armados com metralhadoras que o capturaram.
No segundo dia, mudou de cativeiro e ficou, até a libertação, encapuzado, com os braços amarrados e os pés acorrentados. Emagreceu nove quilos. Foi solto por
policias civis da região de Sorocaba (100 km de SP).
Voltou para casa eufórico, mas
teve insônia desde a primeira noite. "Achava que meu travesseiro
tinha o mesmo cheiro do cativeiro", disse. A insônia continuou, a
agonia aumentou e J. passou a ter
crises frequentes de choro. "Pensava que qualquer pessoa na rua
era um sequestrador."
Tomou calmantes, depois antidepressivos. Nada adiantava.
Soube do programa do Hospital
das Clínicas que acompanha vítimas de sequestro. Passou três meses fazendo terapia em grupo.
"Entendi que existem pessoas
que sofreram mais do que eu, e isso ajuda a gente a superar. Chorei
com o depoimento dos outros e
choraram com meu depoimento.
Somos cúmplices", disse.
J. completou o tratamento de
três meses e agora é acompanhado pelo programa do HC. Faz parte da metade do grupo que conseguiu melhorar seu quadro clínico.
Um ano e sete meses depois do
sequestro, ele tenta levar uma vida normal. Toma antidepressivos, consegue rir de algumas situações e percebe que alguns de
seu atos são explicados pelo que
viveu no cativeiro.
Nos 30 quilômetros que faz de
carro da casa até o trabalho, ele fica com o telefone celular sempre
ligado no viva-voz. Fala com a
mulher, com um amigo, com um
funcionário ou com o sócio. Tudo
para não se sentir sozinho. Ao
chegar em casa, a primeira coisa
que faz é ficar seminu. "Percebo
agora que esse fato tem relação
com o fato de ter ficado amarrado
e encapuzado tanto tempo."
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