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São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Palavras colhidas no sonho de jurista

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Quer o leitor seja da área jurídica, quer não seja, certamente compreenderá a afirmação de que o curso em uma faculdade de direito tem como missão essencial formar a consciência dos fins do Direito, consistentes no estabelecimento da disciplina da convivência humana. Viver é conviver. Para conviverem, os seres humanos são submetidos a uma disciplina, decorrente de regras ou normas jurídicas, que autorizam aqueles que forem lesados por sua violação a impor ao violador as consequências previstas em lei.
Nos regimes de força, das ditaduras, a liberdade da boa convivência se obscurece com o sacrifício dos direitos individuais e a insegurança dos que não são chegados ao poder. Devemos, pois, defender a disciplina legítima da convivência nas sociedades humanas com leis discutidas, votadas e promulgadas pelos Poderes competentes do Estado, livremente escolhidos pelo povo.
Nos dois parágrafos anteriores, tentou-se resumir as páginas iniciais do primeiro capítulo de "Palavras do Amigo aos Estudantes de Direito", de Goffredo Telles Junior (164 páginas, Editora Juarez de Oliveira). Ao todo, são cinco capítulos, recolhidos de igual número de palestras dadas por Goffredo em seu escritório a um grupo de estudantes. Foram cuidadosamente revistas pelo autor. Constituem um monumento de clareza e síntese que todos, ligados ou não ao direito, deveriam ler. Compreenderão, em o lendo, que os direitos decorrem das leis, verdadeiras permissões do fazer e do não-fazer. O que seriam, nesse caso, os direitos humanos, de que tanto se fala hoje? Lembrando que as normas jurídicas não são dados da natureza, mas dados da inteligência, Goffredo define leis dos direitos humanos como permissões jurídicas para a fruição de bens soberanos. Tanto nesse caso como nas alternativas normais da aplicação da lei, deve-se buscar seu espírito, e não sua letra. A lei é a sua própria interpretação, que excede "a justiça dos escribas e dos fariseus", como disse Jesus no Sermão da Montanha.
Dizer o que há por ser dito de modo direto e claro constitui objetivo ideal, mas difícil de ser atingido pelos juristas. A dificuldade é maior quando se passa da linguagem oral para a escrita, porquanto o assunto envolve certas técnicas, impondo o uso de palavras específicas. Os trabalhadores do direito são alvo mais ou menos constante de queixas contra a complicação de sua linguagem, até pelo emprego de formas e vocábulos pouco usuais no trato comum. Quando se encontra um livro no qual as frases surgem na ordem direta, o autor diz o que pensa, enuncia opiniões com firmeza e dignidade sem recorrer a citações constantes, há uma festa para a alma e para o espírito do leitor. Essa é a festa que Goffredo Telles Junior propicia sem outra preocupação que não a de contar o Direito, desvendando-o.
É impossível resumir a sabedoria de cada página das "Palavras do Amigo". Nos quatro capítulos seguintes, vêm traçados os limites entre Direito e moral, os princípios e as causas da condição humana, as origens e os valores do conhecimento em geral e, em particular, do conhecimento científico.
A cultura como ordem da inteligência, para explicar o sonho do jurista, que não se satisfaz com saber o Direito, aparece no final, com a lembrança de Victor Brecheret, grande escultor nosso. Goffredo elogiou seu "Monumento às Bandeiras" e Brecheret respondeu-lhe que as figuras já estavam na pedra e explicou: "O que eu faço é somente soprar com amor para assustar a poeira". O sonho do jurista consiste em soprar a poeira das normas de convivência para aprimorá-las, na busca permanente de liberdade e de justiça.


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