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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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SP 450

Dois italianos que se tornaram paulistanos representam os extremos da elogiada gastronomia de São Paulo, a popular e a de luxo

A conquista da cidade pela boca

GIOVANNI BRUNO,67 Veio de Casalbuono, perto de Salerno, sul da Itália, em 1950, com 15 anos, para trabalhar de lavador de pratos no Gigetto, onde ficaria pelos 17 anos seguintes. Ajudou a criar a chamada cozinha cantineira de São Paulo. Hoje, cuida de seu Il Nuovo Sogno di Anarello

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

São Paulo, 1954. Enquanto a cidade se organiza para comemorar seus 400 anos, um dedicado garçom se preocupa com coisa mais importante: atender a um cliente, que acaba de voltar de Roma e está desejoso de um prato visto por lá, que descreve em linhas gerais.
O cenário é o Gigetto, mítico restaurante paulistano, inaugurado na rua Nestor Pestana em 1939 e ainda hoje em atividade na rua Avanhandava, que foi reduto da intelligentsia dos anos 50 e 60 e cuidou de fazer a transição culinária das cantinas do Brás do começo do século passado para o que viria a ser chamado mais tarde de cozinha cantineira paulistana.
O garçom, de média estatura, gestos largos e teatrais, olhos pretos e apertados e 19 anos, entra na cozinha e sai de lá, 15 minutos depois, com uma pasta recheada de carne bovina e mortadela e banhada por molho branco, ervilha, presunto cozido e gratinada com parmesão. Estava inventado o capelete à romanesca.
O autor é Giovanni Bruno, ainda hoje na ativa, à frente de seu Il Nuovo Sogno di Anarello, na Vila Mariana. O italiano de Casalbuono, sul do país, deixou de ser garçom em 1967, mas passou os últimos 53 anos servindo. "Se você tem mais de 50 anos e mora em São Paulo, é meu filho, porque direta ou indiretamente eu já lhe servi um prato de comida."
Talvez só haja um pouco de exagero na frase. Realmente, desde que começou no restaurante do centro, descascando batatas e lavando pratos, em 1950, um dia após desembarcar no porto de Santos do navio que o trouxe de Nápoles, Giovanni Bruno sempre esteve no ramo da restauração.

De rico para pobres
Primeiro, como funcionário do Gigetto por 17 anos, onde ganhou fama como "garçom dos duros", como conta Roberto Freire em sua biografia, "Eu É Um Outro" (Maianga, 2003). "Eu usava a gorjeta dos ricos para completar a conta dos pobres, geralmente artistas e escritores", lembra Giovà, apelido dado pelos amigos.
Ali, inspirou e treinou nomes que depois difundiriam em suas próprias casas a tal cozinha cantineira, gente cujo sobrenome virou sinônimo de pratos generosos, saladas enormes e pastas ultracozidas e com muito molho, como Pier Luigi Grandi, o Piero, João Lellis e Sargento.
Reivindica para si a popularização dos molhos brancos e a primeira massa "aos quatro queijos" servida no Brasil. "Fiz também o primeiro agnolotti, que havia conhecido em Gênova, aquele com nozes e passas", afirma.
Depois virou proprietário, numa carreira nem sempre marcada pelo sucesso. Sua primeira casa, Cantina do Júlio, durou seis meses de 1967, na rua 13 de Maio, miolo do Bixiga. Teve de ser demolida para alargamento da rua.
Mas ficou famosa por um artigo de jornal, que reproduzia a carta que Giovà havia mandado para sua mãe, na Itália. A correspondência começava com a frase "Mamma, ora comando io!" (Mamãe, agora quem manda sou eu!), em que ele contava que havia pendurado de vez seu paletó branco.
Sua fama saía das paredes do Gigetto para a grande mídia. Ele inspiraria pelo menos uma novela de Benedito Ruy Barbosa ("Vida Nova") e daria consultoria a outras duas, entre elas "Terra Nostra". Quase três décadas depois, a peça de roupa continua em seu escritório, "para que eu nunca me esqueça de onde vim".

Um castigo do "irmão fogo"
Sua segunda casa, no ano seguinte, teve sorte parecida. "O irmão fogo", como diz o restaurador, pôs abaixo o Giovanni Bruno da rua Santo Antônio, também no Bixiga, seis meses depois de sua inauguração. O incêndio consumiu o quarteirão.
De lá, com três sócios, assumiu o Le Arcate da rua Martinho Prado, onde ficaria até 1979. Novo golpe. Seus parceiros o expulsaram da sociedade. Tentou abrir um outro restaurante com seu nome e descobriu que o registro das palavras Giovanni e Bruno não lhe pertencia mais.
Nascia assim Il Sogno di Anarello, na rua José Maria Lisboa, nos Jardins, em 1980 -o nome vem do apelido dado por Antunes Filho; Anarella era personagem de Gina Lollobrigida no filme "Pão, Amor e Fantasia" (1953).

O sonho que virou uma rua
Deu certo, cresceu, foi acrescido de "Nuovo" no nome e mudou-se para um lugar maior, numa travessa da Vila Mariana que graças a uma canetada do amigo e então prefeito Jânio Quadros (1917-92) virou rua Il Sogno di Anarello.
Casado há 42 anos, é palmeirense roxo. "Minha primeira lembrança da cidade foi no dia em que cheguei e vi a comemoração de um título do Palmeiras nas ruas." São Paulo, para ele, "é a gentileza do largo do Arouche, uma mãe que me tratou como seu filho caçula, me deu até uma rua".



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