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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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MEDITAÇÃO PROFUNDA

Kyol Che, ou "prática rigorosa", em coreano, impede participante de falar durante esse período

Retiro espiritual faz grupo ficar "mudo" por uma semana

PAULO SAMPAIO
DA REVISTA

"____", "pergunto", com a toalha de banho na mão, para a coordenadora da cozinha, Adriana. "____", ela "responde", apontando o varal atrás do caramanchão.
Estou no segundo dia de Kyol Che ("prática rigorosa", em coreano), retiro espiritual baseado em rigorosa rotina de meditação, cânticos e genuflexões à indiana (abaixar a testa até o chão), que começa às 6h45 e acaba às 21h. E, por sete dias (R$ 910 por cabeça), nenhum participante pode falar.
Os mentores são o ex-biólogo molecular e hoje terapeuta esotérico Nuno Chacel, 42, nome espiritual Khalis (lê-se Calís), e a mulher dele, a psicóloga Ana Cristina Lima, 34, rebatizada Tarika. Casados há sete anos, eles fundaram o Instituto Renascimento de São Paulo, que oferece aulas de ioga, meditação, respiração e formação em vidas passadas e renascimento -além de retiros de meditação.
Neste Kyol Che, seis mulheres e quatro homens estão em um sítio em Camanducaia (MG). Na casa com paredes de tábuas corridas, chão de lajotas e pé-direito alto, o celular fica desligado, não há TV nem energia elétrica.
A Revista da Folha resolveu experimentar algo radical. "Você vai ganhar uma compreensão do funcionamento da mente que é para sempre", explica Khalis. Ele e Tarika negam estar ligados a uma doutrina. "Todas as religiões dizem essencialmente a mesma coisa. Então, leio textos de mestres orientais sobre a importância da "prática" para a observação interior", diz Khalis.

A viagem
O primeiro encontro foi às 8h30 do domingo, o início da "viagem": duas horas em ônibus comercial até Camanducaia, serra da Mantiqueira. O traslado até o sítio, a uma hora dali por estrada de terra, é feito de Kombi.
"Falo que nem papagaio, será um trabalho de coragem", diz o bancário Flávio Binder, 53. "Será que aguento tanto tempo sem falar?", indaga sua mulher, Elena, 52. "Minha política é não esperar nada", diz a comerciante Arlete*, 62, que já fez duas vezes o caminho de Santiago de Compostela.
A mais empolgada parece ser Rafaela*, 40, profissional de marketing. "Isso pode mudar nossas vidas. Para mim é um momento muito importante, busco outro modelo de felicidade."
Após trocar a Kombi (que não aguenta o tranco) por um jipe 4x4, somos recebidos com longos abraços por Khalis e Tarika. Eles nos explicam a coreografia do retiro. Algumas regras:
1) Ao entrar na sala de meditação, todos devem reverenciar um quadro de papel branco na parede. Simboliza "o mestre";
2) O colchonete preto usado para o "zazen" (ato de se sentar para meditar) deve ser "passado" com as mãos toda vez que o meditador se levantar, e a costura do forro deve permanecer do lado direito;
3) Só é permitido deixar a sala nas caminhadas lentas, um passo-a-passo em que meia volta ao redor da sala pode levar 8 minutos;
4) Uma dupla por dia é encarregada da "meditação do trabalho", ou seja, varrer e passar um pano úmido na sala de meditação.
"Parece idiotice [manter a costura da almofada para a direita ou para a esquerda], mas as regras servem para ajudá-lo a manter-se presente em todas as etapas da meditação", explica Khalis.

A jornada
A primeira atividade do dia, em jejum, às 7h, é o "bowing": em pé, na almofada, o meditador deve ajoelhar-se e inclinar o tronco até a testa tocar o chão, sacudir os braços e voltar à posição inicial -108 vezes. Surge a primeira baixa de "corpo físico": Rafaela aponta o pulso e "diz" "!".
Ainda em jejum, todos entoam dois cânticos em coreano, três vezes cada. A letra de "O Grande Darani" é cheia de "sara sara", "guro guro" e "hye hye"; o fundo musical lembra a batida de uma colher no fundo de panela.
Café da manhã, intervalo e duas horas e meia de meditação em posição de lótus. Khalis lê parábolas e as interpreta enquanto seus olhos percorrem a sala.
Durante os "compromissos" na sala de meditação (genuflexões, cânticos e práticas), concentro-me no pio dos pássaros, depois na batida do meu coração e, por fim, procuro perceber "esse espaço que a gente chama de corpo" -e noto que estou com cãibra na batata da perna direita.
Como ninguém pode reclamar, Khalis se adianta. "Essa prática pode trazer mudanças químicas no organismo. Se sentir enxaqueca, não resista, deixe chegar."
Vem então a fase de abstração mais difícil, uma hora de "meditação kundalini". Em 15 minutos, com um som tipo "sintetizador", o meditador deve se sacudir sem tirar os pés do chão; em seguida o ruído envereda para algo com um pouco mais de ritmo.
Olho para o lado e vejo uma das sexagenárias com os braços levantados, a outra com o queixo empinado, ambas requebrando. Uma delas se abaixa com os joelhos abertos, como um Jimmy Hendrix sem a guitarra. Surge a inveja: quero meditar também!
No quarto dia, Khalis informa: "Nossa linguagem vai ficar diferente, é o que a gente chama de zen". Ele adota a retórica dos opostos: "o nada é tudo", "a dor é a felicidade", "o vazio preenche".
À noite, quando o gerador é desligado, por volta das 22h, a casa mergulha em uma atmosfera de mistério que me lembra "O Caso dos Dez Negrinhos", de Agatha Christie -ali muito mais para "O Caso dos Dez Mudinhos".
A quinta traz o último e mais emocionante capítulo do retiro. Khalis avisa que há alguém quebrando regras. Soubemos depois que era Rafaela, a moça que queria rever o "modelo de felicidade".
No sábado, Rafaela chuta o pau da barraca, desata a falar compulsivamente e é enviada para São Paulo de manhã, cerca de três horas antes do restante do grupo.
Após a última prática, somos liberados para falar. Cada um ganha o resumo do que foi lido, um CD com os cânticos e uma pasta sem nada dentro -"o vazio".
O pior não foi ficar sem falar, mas ter me submetido à overdose meditativa e às flexões, cânticos e práticas. Os primeiros dias foram mais fáceis porque relaxei. À medida que nos aproximávamos do fim, fui perdendo a paciência. Mas falar, mesmo, só dormindo, segundo meu colega de quarto.
É claro que a vida na volta parece um mar de rosas e que nunca mais vou esquecer essa semana.


* Nomes trocados a pedido
www.renascimento.com.br



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