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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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VIOLÊNCIA

Linchamento aconteceu há uma semana na zona sul de São Paulo; morador "pacato" foi morto após atropelar 2 crianças

Após crime, Grajaú vive crise de consciência

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Crianças brincam em rua do Parque Grajaú, onde motoristas costumam passar em alta velocidade


GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Um pai que perdeu o filho, um filho que perdeu o pai." A melhor descrição do conflito pelo qual passam moradores do Parque Grajaú (zona sul de SP) não vem da polícia nem de especialistas que costumam analisar de fora os problemas da periferia. Vem de uma moradora, uma mãe que teve de retirar o filho gravemente ferido debaixo de um carro.
Em uma viela do bairro, Cícera Maria de Melo Silva, 43, tenta retomar a vida em seu pequeno salão de beleza. Mas logo voltam as cenas de sábado passado, quando uma briga motivada por ciúme terminou no atropelamento de duas crianças -uma morreu e outra ficou ferida. Em seguida, houve o linchamento do motorista responsável pelo acidente.
A gravidade dos ferimentos a fez acreditar que tivesse perdido o filho de nove anos. Ele teve traumatismo craniano e sobreviveu, mas vai ter de passar por outras cirurgias. Na quinta-feira, como boa parte dos moradores, ela tentava explicar o que aconteceu. Ora com raiva, ora com compaixão.
"O povo fez isso porque não acredita na Justiça. Sabe que ele [motorista" entraria numa delegacia, pagaria fiança e sairia impune", afirmou a cabeleireira, indignada. Logo em seguida, a piedade. "Mas não é certo fazer isso. Fiquei surpresa quando vi aquela multidão atrás dele", afirmou.
Ela acredita que o motorista foi linchado por um grupo de 30 a 50 homens. Eles iam saindo das casas e entrando no grupo de agressores. A vítima apanhava, caía, conseguia escapar, mas era logo alcançada. Isso durou quase um quilômetro, quando recebeu os tiros que a mataram.
O motorista não era, porém, um desconhecido. Pertencia à comunidade, conhecia seus linchadores e frequentava o bar do tio da criança que morreu. Gilmar Alves de Araújo, 27, trabalhava no estacionamento da Câmara Municipal. À noite, cursava o 2º ano do ensino médio. Seria pai pela segunda vez. Ajudava a sustentar a cunhada e duas sobrinhas.
Em casa, Araújo recebia até broncas da mulher por ser tão pacato. "Eu falava isso porque ele ficava tranquilo demais quando as pessoas brigavam com ele. Ele só dizia: "Não esquenta a cabeça". E dava risada", lembra a costureira Maria Erenilza Ferreira Oliveira, 32, grávida de três meses.
Ela diz não saber explicar por que o marido perdeu a cabeça naquele sábado, quando ela e outra mulher discutiram na rua por causa dele. Nem por que ele saiu com o carro de ré em alta velocidade, provocando o acidente.
A costureira afirma que só se lembra que os moradores começaram a jogar pedras quando os dois ainda estavam dentro do carro. "Tinha gente que era amiga dele. Mas, naquela hora, ninguém tentou evitar o linchamento."
Para a auxiliar de enfermagem Maria Lopes, 48, que socorreu as crianças, a população percebeu o erro, mesmo tardiamente. "Foi o impacto de ver as crianças naquele estado. Mas agora, pensando melhor e vendo que era um homem de bem, acredito que as pessoas estão arrependidas", disse.
A socióloga Jacqueline Sinhoretto, 29, que estudou a prática de linchamento na sua dissertação de mestrado pela USP (Universidade de São Paulo), afirma que falta de clareza entre bem e mal -se a vítima fosse um criminoso desconhecido, seria mais fácil- torna a análise mais complexa e divide a opinião dos moradores.
Entre os casos estudados pela socióloga, ocorridos na década de 80 em São Paulo, está o de uma comunidade que linchou um homem, mas passou a ajudar no sustento da sua mulher e filhos.
O menino Cristian Mateus dos Santos, 7, morto no acidente, fazia reforço escolar e capoeira na comunidade paroquial. Seu jeito brincalhão conquistou a simpatia do padre Ari Ribeiro, 34.
Apesar do envolvimento afetivo, o padre disse que não vai poupar críticas aos linchadores na missa de 7º Dia, às 19h de hoje.
Moradores defendem uma missa na própria rua. "Como posso celebrar uma missa na rua que foi palco de uma selvageria que contraria a fé católica? Não cumpriram a lei de Deus nem a dos homens", questionou o padre.


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