São Paulo, quarta-feira, 03 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

URBANIDADE

O jardim dos sonhos de Cafu

Vincenzo Scarpellini
RUA BENTO FREITAS "A inexperiência vale tanto quanto a experiência." Dita por um homem de 75 anos, essa frase é um ato de coragem de quem não perde o gosto de inventar. E o que é a invenção senão diálogo entre a inexperiência do novo e a experiência do passado? Para manter esse diálogo, Paulo Mendes da Rocha, arquiteto "inexperiente", tem seu escritório em pleno centro da cidade (VINCENZO SCARPELLINI)

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

E sburacada e bamboleante, uma ponte provocou dez anos de discussão entre a cidade de São Paulo e o Embu das Artes -um sinal do grau de deterioração daquela região, na zona sul paulistana, nas proximidades do Capão Redondo, onde se batem recordes mundiais de violência.
A Prefeitura do Embu não consertava a tal ponte de madeira, imputava tal responsabilidade ao município de São Paulo, que, por sua vez, alegava que o financiamento da obra deveria sair dos cofres do Embu. Em 1994, a comunidade, cansada de tanto esperar, assumiu a obra.
Aquela ponte tinha um significado especial para o adolescente Marcos Evangelista, o Cafu, que, ao cruzá-la, encontrava, sem saber, seu futuro. Era o caminho para o campo de várzea, onde jogava futebol, também cenário do namoro com Regina. "A família está em primeiro lugar", diz Cafu. "Também não posso me esquecer de onde vim."
Regina e Irene foram dois nomes de mulher que correram pelo Brasil, quando Cafu, no domingo passado, recebeu a taça de campeão mundial de futebol, fez uma declaração à mulher e estampou, na camisa, o nome do bairro em que foi criado. Nem mesmo os paulistanos sabiam que Irene era o nome de um bairro.
A família Evangelista prosperou, mas o bairro só fez deteriorar-se. O córrego em que Cafu se deleitava nos dias de calor, depois das peladas, virou um esgoto. O odor é tão forte que bosta deixou de ser palavrão. Passou a ser o nome popular de um caminho de terra que todos chamam, sem constrangimento, de "rua da bosta" por margear o córrego.
Jardim Irene tem o padrão típico dos bairros violentos brasileiros: escolas ruins, escassez de opções de lazer, desemprego, baixa escolaridade, tráfico de drogas, degradação ambiental, ausência de policiamento.
Graças à vitória na Copa do Mundo, Cafu conseguiu chamar a atenção de um jeito especial para a periferia e para mais um de seus sonhos. Há dois anos, ele tenta construir no Jardim Irene um espaço para crianças e jovens que combine esportes com educação -mais do que a maioria dos políticos neste período eleitoral, ele mostrou o caminho para enfrentar a violência e para descobrir talentos, muitos deles hoje absorvidos pelo crime, pela absoluta incapacidade de sonhar.

E-mail - gdimen@uol.com.br



Texto Anterior: "Sequestro de crianças é atípico"
Próximo Texto: Minianel ajuda a circulação no centro de SP
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.