São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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Discriminado, camelô do trânsito fatura até R$ 1.500 por mês

Alvos freqüentes de xingamento por atrapalharem o trânsito ou incomodarem motoristas, eles dizem que já é natural a execração

Irmãos carroceiros têm renda de R$ 1.500; camelô em cruzamento nos Jardins trabalha com as quatro filhas, todas com ensino médio


PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Morango, morango, morango. Só morangos selecionados. Leva quatro caixas, paga R$ 5. Morango, morango. Olha a fruta fresquinha. Morango. Morango, morango, morango."
Ao volante de uma picape Chevrolet azul turquesa 1981, o vendedor Hugo Alves de Aquino, 21, 20 km/h, diz que só não ouve mais xingamentos porque o alto-falante colocado na capota da cabine abafa outros sons: "Eu precisava ter três mães para dar conta de todos os palavrões", diz Aquino, segurando o trânsito na avenida Higienópolis, região central.
Difícil encontrar um motorista em São Paulo que não se estresse ao topar com um "Aquino" pela frente. Ninguém parece interessado em saber os motivos que o levaram a estar sempre puxando o buzinaço.
"É um absurdo deixar uma carroça dessas rodando", diz, meio avermelhado, o comerciante Edson Prieto, 36.
Aquino parece tranqüilo: "Eu estou trabalhando. Saí de casa às 8h, vou até as 21h", diz o vendedor, que fatura cerca de R$ 600 por mês.
Disputam com a picape de Aquino o troféu "pedra no caminho" no trânsito de SP, entre outros, o limpador de vidro que trabalha no semáforo (o panfleteiro, o vendedor, o pedinte); o carroceiro e o manobrista.
"Ligo o ar e deixo o vidro fechado, para não precisar ficar dizendo não", diz a dona-de-casa Mirtes Freitas, 42, no Itaim.
Os rejeitados falam sobre como é integrar uma espécie de "outro lado" na aterrorizante massa motorizada da cidade.

Estelita e o rodinho
Expor-se à execração pública em um semáforo de Pinheiros é quase um detalhe na miséria que o destino reservou para a limpadora de vidros Estelita de Jesus, 44. Viúva três vezes, dois maridos assassinados, um suicida, quatro filhos, dois mortos, Estelita conta que jamais impinge seu rodinho.
"As pessoas olham feio, têm medo. Eu também. Eles chamam a polícia, levam meu rodinho", diz Estelita, que, em um dia bom, ganha R$ 15.

Em família
O baiano Ailton Rocha, 45, vive uma situação mais estável. Rocha e suas quatro filhas sempre trabalharam em sinal de trânsito. Todas completaram o ensino médio. Uma formou-se chefe de cozinha e toca trombone. A mais nova, Silvana, 23, continua trabalhando em sinal; fez curso técnico de farmácia, toca violino e vende de cereja a carregador de celular.
Trabalha no cruzamento das ruas Estados Unidos e Gabriel Monteiro da Silva. Faz isso desde os oito. Não quer posar para foto. "Ninguém na minha turma do curso [técnico], nem no inglês, sabe que eu trabalho na rua. Não tenho vergonha, porque foi graças ao meu trabalho que eu pude estudar. Mas as pessoas acham que quem faz isso é maloqueiro."
Nas palavras do carroceiro Felipe, 16, que está em cima de uma pilha de sacos com lixo reciclável, "as pessoas têm nojo da gente".
Felipe acompanha o irmão Felipe Souza, 18 ("minha mãe adora esse nome"), em trajetos de até 20 km. "É nós [sic] xingando [os motoristas], e eles xingando nós." Os dois ganham cerca de R$ 1.500 por mês, rodando pelo caminho mais curto. Não há contramão. "A gente não tem motor, é na perna."
Entre os enjeitados no trânsito, nem tudo é coesão. Carroceiros são xingados por manobristas. "Isso aí é uma praga", diz João Ribeiro, 40. Ele manobrava faz até pouco tempo em um restaurante na Vila Olímpia. Conta, com alívio, que foi transferido para os Jardins.
"O cliente desses lugares não espera um minuto. Teve um que apontou uma arma para me obrigar a pegar o carro dele na frente. Lá era uma fila enorme, a rua estreita, não dava para trabalhar bem."
Seja lá o que "trabalhar bem" queira dizer num caso desses.


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