São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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Prédios e espaços públicos são marcados com símbolos de indivíduos e gangues que disputam espaço e visibilidade

Guerra entre pichadores desfigura paisagem urbana

DA REPORTAGEM LOCAL

Caminhar por São Paulo ao lado de um pichador é como ter cinco graus de miopia e, de repente, vestir um par de óculos.
Os rabiscos espalhados por prédios e viadutos ganham a forma de uma caligrafia -mas o significado dessa escrita permanece inacessível aos olhos dos leigos.
São nomes de pichadores, de gangues e das chamadas "grifes" -que reúnem várias gangues em torno de uma única marca. As inscrições demarcam conquistas de território em uma disputa por espaço na paisagem urbana.
Os pichadores da gangue "Os Maldosos" se penduram em viadutos. Os da "Cripta" já escalaram um edifício de mais de 20 andares sem nenhum aparato típico dos praticantes de rapel.
Entre os grupos existe uma lógica de guerra para ver quem desafia o impossível, quem chega mais alto, quem burla a segurança dos edifícios. As "vítimas civis" dessa disputa são os donos de imóveis atingidos e os cidadãos que se importam com a conservação dos bens públicos.

Senha
"Pichação é ibope [visibilidade, prestígio] e adrenalina. Vale tudo. Mas precisa ter coragem", afirma Negão, 25, de "Os Maldosos".
"O que me instiga é a estrutura do prédio. É descobrir a senha [maneira de chegar a determinado ponto de um edifício] de um lugar", diz DJ, 20, da "Cripta".
"O lance do "pixo" [pichação, na gíria do grupo] é como o da publicidade: aparecer mais e nos lugares mais visíveis, para criar uma identidade", explica Nunca, 21, que também faz grafites. Para ele, pichação é protesto e é arte.
A polêmica se revela quando as letras estampadas pela cidade são qualificadas como vandalismo. "Isso é relativo. Mas, se tem muita pichação numa cidade, isso é conseqüência de alguma coisa: falta de lazer, frustração. É um efeito da nossa época", diz Nunca.

Fama de mau
"A origem do grafite e da pichação é comum, é subverter o espaço urbano", explica Alexandre Barbosa Pereira, 25, que estuda as pichações no Núcleo de Antropologia Urbana da USP. "Só que o grafite foi cooptado pelo poder público e pela publicidade, enquanto a pichação foi renegada. Como não é desenho nem tem mensagem, ela é marginalizada."
"A pichação é um reflexo da insatisfação com uma sociedade que produz ilusões o tempo todo: a ilusão do bem-estar, do poder e do glamour. Isso não preenche o vazio existencial das pessoas, pelo contrário", analisa Celso Gitahy, 36, autor de "O Que É Grafite" (Coleção Primeiros Passos).
Para ele, é por isso que o grafite se firmou como algo belo e a pichação como vilã. "O pichador é um dos únicos segmentos atuantes da sociedade que está dizendo não, que está incomodando. E isso não aconteceria se eles pintassem borboletas pela cidade."

Estilo
Lucas Fretin, que registrou o cotidiano de pichadores de São Paulo no documentário "A Letra e o Muro", avalia que o estilo gráfico rebuscado e quase incompreensível das pichações é, em grande parte, o que incomoda tanto a seu respeito. Segundo ele, o estilo das pichações de São Paulo é único, o que as tem tornado conhecidas em outras capitais onde o grafite é bastante difundido como Nova York, Paris e Berlim.
Entre os pichadores, além da aventura e dos desafios que a paisagem urbana oferece, criar letras originais é o grande barato. Em reuniões de pichadores, como a que acontece às terças-feiras em frente ao Centro Cultural São Paulo (centro), os integrantes de gangues trocam o que chamam de "folhinhas" -pedaços de papel com as caligrafias inscritas. "Algumas folhinhas de pichadores famosos chegam a ser vendidas", conta Pereira.

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