São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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"Se pichar é impor uma idéia, meu nome cabe", afirma jovem que marcou com tinta duas obras de arte expostas em São Paulo

"Não", pichador da Bienal, diz que também é artista


Pichadores se arriscam para pintar viaduto sobre Radial Leste


FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Se não fosse pichador, "Não", 21, seria o que muitos artistas de rua chamam de "boy". Não vive na periferia, fez faculdade de design (que já largou) e tem dinheiro para algumas das coisas que deseja.
Num exercício de audácia e de marketing, ele conseguiu um destaque inédito entre pichadores da nova geração e passou dos muros para as páginas dos principais jornais do país ao pichar sua marca na Bienal de São Paulo, nas instalações dos artistas Jorge Pardo e Mike Nelson.
Leia, a seguir, trechos de entrevista concedida por Não à Folha.

Folha - Por que pichar a Bienal?
Não -
Fui com a minha mina na abertura da Bienal apreciar umas artes. Encontrei uma ou duas coisas que poderiam ser chamadas de arte. O resto era enganação.

Folha - O que é arte para você?
Não -
Música é arte, dança é arte. Mas não tem essa de virar um copo de ponta-cabeça e dizer que é arte. Isso é enganação. O cara está chamando a gente de trouxa e pegando o nosso dinheiro.

Folha - Mas a Bienal é gratuita.
Não -
É o tipo de dinheiro que poderia ser investido em coisas para o público. E não para o pessoal entrar e sair sem entender nada. Uma exposição dessas não acrescenta nada.

Folha - Qual é a sua relação com a arte?
Não -
Sou artista plástico. Eu lanço o "Não". Meu "pixo" é uma arte de rua. Lá [na Bienal], não pude trabalhar direito porque tive de ser rápido, ou teria feito certinho, com as letras encaixadas no estilo, uma carinha louca e uma frase para as pessoas entenderem por que eu estava fazendo aquilo.

Folha - E por que você fez aquilo?
Não -
A gente vive numa cidade que tem 20 milhões de pessoas [são cerca de 10,7 milhões, segundo o IBGE], e não me identifico com quase nenhum canto da cidade. Quando vejo o meu nome ou o nome de pessoas que conheço na rua, isso me traz uma felicidade. Pode ser até um "pixo" de um desconhecido, que eu fico feliz de ver que alguém passou por ali e deixou sua marca.

Folha - Que felicidade é essa?
Não -
Isso vem desde a época da arte rupestre. Os caras escreviam e desenhavam nas cavernas. Isso é instintivo. Mas na sociedade de hoje, com suas leis de propriedade, as pessoas se dóem muito por uma coisa que faz parte da natureza humana.

Folha - As obras pichadas foram escolhidas ou foi algo ocasional?
Não -
Eu queria pichar várias. Na última Bienal, colei vários adesivos [em que estava] escrito "Não". Só que não fiz isso pensando em ter destaque. Por que eu não posso participar da Bienal? Até curti o trabalho do cara que eu pichei. Visualmente, a arte dele [Jorge Pardo] é legal. A cabaninha é o maior estilo. Mas não escolhi nada. Foi ali que pude pichar porque ninguém iria me ver. Mas fiz outras pichações que não acharam naquele dia.

Folha - E a outra obra pichada?
Não -
Não entendi essa obra. Aliás, nem sei se aquilo é uma obra de arte. O bagulho é tão ruim que nem dá pra saber se é arte ou se fazia parte dos bastidores da Bienal, de um espaço que o público não poderia acessar.

Folha - Você estava protestando?
Não -
Não foi a minha intenção. Se bem que eu fiquei puto quando cheguei lá e vi aquelas paradas. E eu não sou um ignorante. Eu estudei. Eu cheguei à faculdade e tudo.

Folha - Você acha que a pichação é discriminada no Brasil?
Não -
Aqui ninguém se interessa. Fora do Brasil, sim. O governo aqui é muito burro. Em Nova York, em 1970, quando começaram a fazer grafites, o governo norte-americano resolveu tentar entender o que era aquilo. Financiou documentários e livros sobre o assunto. E essa produção foi espalhada pelo mundo como uma cultura dos Estados Unidos. Hoje em dia, em qualquer lugar do mundo onde há um grafite, há um pouco da cultura americana.

Folha - Pardo, o artista, especulou em entrevista à Folha qual a sua motivação ao pichar. Ele disse: "não, isso não é um trabalho", "não, eu não acredito nesse trabalho", "não, eu não entendi esse trabalho" ou "não, eu tive um mau dia hoje". Ele acertou?
Não -
Não. Mas talvez eu tenha um mau dia todo dia, se a gente for ver a condição do nosso país. E isso me motiva a escrever. Ele falou algo que tem a ver: o que eu queria era a oportunidade de falar em alguma mídia. A gente fica no anonimato porque ninguém pára para entender as nossas letras. A gente passa anos aprimorando uma tipologia. Ela vai evoluindo. A escrita em São Paulo é única.

Folha - Você ficou surpreso com a repercussão?
Não -
Fiquei. Meu telefone não parou de tocar. E meu pai ficou bravo comigo. Ele não curtiu. Achou que eu não tinha o direito de desrespeitar a obra do cara. Mas ele foi moralista. Se fosse um quadro, eu não faria aquilo. E se a Bienal fosse boa de verdade e fizesse as pessoas enxergarem o mundo de outra maneira, teria rendido mais reportagens para o jornal. Mas faz vários dias que falam do meu "pixo". O que fez as pessoas enxergarem algo diferente foi eu ter colocado o meu nome ali. Enquanto isso, o policial matando um cara no morro não rende quatro dias de matéria.

Folha - Disseram que a obra foi "vandalizada". Para você, pichar é vandalismo?
Não -
Se eu tirasse a utilidade de alguma coisa quando picho, aí seria vandalismo. Mas se eu só interfiro com uma estética, não atrapalha nada. Até estou acrescentando algo. Os "pixos" mostram que pessoas vivem ali.

Folha - Há outros jeitos de mostrar pessoas vivendo.
Não -
É. Mas o "pixo" mostra que a vida é intensa. Tem a ver com o cotidiano, tipo "tô vivo".

Folha - Por que "Não"?
Não -
Era um nome bom para pichar, bastante significativo e com só três letras. A gente ouve não a vida inteira. Se pichar é impor uma idéia, meu nome cabe.

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