São Paulo, quinta, 3 de dezembro de 1998

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INCULTA & BELA

'Fi-lo porque qui-lo'

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Na última coluna, tratamos das benditas regras de colocação pronominal. Na verdade, houve apenas um prólogo, voltado basicamente para o lado pedagógico do problema. Peço encarecidamente aos professores de português que têm o hábito de ler esta coluna que reflitam a respeito.
Pelas ruas, na própria quinta-feira passada e no correr da semana, muita gente me perguntou, curiosíssima, qual o veredicto a respeito da suposta frase de Jânio ("Fi-lo porque qui-lo"), que deixei para a coluna de hoje.
Vamos lá. Antes, é bom saber que, no português padrão, o pronome "o" sofre algumas adaptações fonológicas, de acordo com a terminação das formas verbais a que se junta.
Quando o pronome "o" se junta a verbo terminado em "r", "s" ou "z", ocorrem duas transformações: a forma verbal perde a última letra e o pronome "o" passa a "lo".
Se substituirmos o substantivo "menino" por pronome oblíquo em "Vimos o menino", teremos "Vimo-lo". Em "Vamos ver o menino", teremos "Vamos vê-lo".
Agora, prepare-se. Imagine o seguinte diálogo:
"-E ela seduz o rapaz?
-Sedu-lo. E muito".
"Sedu-lo" é de lascar. Mas está nos clássicos, e você precisa conhecer. Tem coragem de sair por aí dizendo isso? Caso alguém lhe pergunte se Cuba produz bons charutos, você não vai dizer "produ-los", vai?
E é aí que entra a empoeirada suposta frase de Jânio. Alguém teria perguntado a ele algo como "Por que o senhor fez isso?". E ele teria dito a pérola ("Fi-lo porque qui-lo").
"Fi-lo" é o resultado de "Fiz+o", em que o "z" some e o pronome "o" passa a "lo".
O problema é o "qui-lo". Para a gramática normativa, certas palavras funcionam como elementos de atração dos pronomes oblíquos.
Na última prova da Fuvest, há uma questão que pede ao aluno a substituição por pronome oblíquo da expressão "todas as sociedades do planeta" no seguinte trecho: "...que afetariam (...) todas as sociedades do planeta...".
A expressão deve ser substituída por "as", e não "lhes", já que o verbo "afetar" não pede preposição (afetar alguém).
O xis do problema está na presença do pronome "que", uma das tantas palavras consideradas atrativas. No caso, atraído pelo pronome relativo "que", o pronome "as" obrigatoriamente fica antes do verbo: "...que as afetariam...".
Na suposta frase de Jânio, o elemento de atração do oblíquo é a conjunção "porque": "Fi-lo porque o quis".
Se ele disse mesmo a frase, é outra história. Onde quer que se ponha o pronome, a frase é um tanto quanto dinossáurica -talvez já na época. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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