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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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A alegria é de graça

DANUZA LEÃO
Colunista da Folha

Custou, mas caiu a minha ficha: o Carnaval não morreu. Continua vivo, vivíssimo, só que mudou de estilo.
Durante o Carnaval, em qualquer cidade do Brasil, quando e onde menos se espera, pode surgir um bloco com um monte de gente atrás cantando e dançando. Esse bloco ou foi organizado antes, com uma pequena banda, ou surge por acaso. É assim: num botequim, alguém começa a cantarolar um samba antigo, faz o ritmo com uma caixa de fósforos, outro alguém acompanha batendo com a faca num prato, as pessoas vão se juntando em volta; um chope aqui, outro ali, e, daí a pouco, está rolando. Quanto custa isso? Quase nada: com animação e uns trocados para tomar uma bebida, a festa está pronta.
O mundo se divide em dois grupos: os que se esbaldam e os que pagam para assistir - uma espécie de voyeurismo. No caso, tentando pegar uma carona na alegria dos outros.
Isso acontece também no maior espetáculo do Carnaval, que é o desfile das escolas de samba; quem desfila paga um dinheirinho -pouco- pela fantasia. Para eles, o Carnaval já começa em novembro/dezembro nos ensaios. No dia do desfile, acabam-se de tanto sambar, enquanto os que compraram um lugar na arquibancada ou conseguiram convite para um camarote com bufê e bebida acham que estão participando da festa, sem perceber que são apenas espectadores de um espetáculo. Faz parte deste segundo grupo, também, a necessidade de se exibir. Nenhum álcool e nenhuma droga anima mais essa gente do que as câmeras de televisão -é constrangedor ver a cena da falsa animação quando surge um fotógrafo.
Eles pegam o carro, o helicóptero, o avião, o que for, para ir onde ouviram falar que as coisas estão "acontecendo". Hospedam-se nos hotéis mais luxuosos e gastam fortunas procurando pelo que não têm: a alegria. Em Salvador, pagam caro por uma mortalha para terem o direito de sambar atrás do trio elétrico de um famoso, enquanto a turma da folia vai mais atrás, de bermuda e camiseta, divertindo-se sem gastar um centavo.
O Carnaval virou um grande empreendimento comercial. Por isso perdeu a graça. Mas o do Rio é cheio de surpresas: domingo, em plena praia de Ipanema, surgiu, não se sabe de onde, um bloco com um caminhão de som modesto. O samba fazia críticas ao presidente Bush e à nossa competente governadora do Estado, falando dos últimos acontecimentos da cidade naquele tradicional deboche carioca/carnavalesco; folhetos foram distribuídos com a letra, as pessoas foram atrás cantando, o Carnaval aconteceu e os gringos dos hotéis de luxo enlouqueceram. Isso sem ensaio, sem coreografia e sem patrocínio -um show de alegria e espontaneidade. Detalhe: absolutamente familiar. Esse bloco cruzou com outros dois, o SOS Iraque e o Paz e Amor. A confraternização foi geral.
Dali, os carnavalescos foram dar um mergulho no mar, depois ficaram na areia dando risada, comendo churrasquinho e tomando água de coco. Esses se divertiram pra valer - e de verdade.
Quem circulou pelas ruas do Rio viu, e quem ficou em casa vendo televisão -e prestou atenção- também: a animação e a alegria continuam as mesmas, só que trocaram de lugar. Para cair no samba, é só engatar atrás de um desses blocos que surgem de uma esquina qualquer, inesperadamente.
A alegria, como as melhores coisas da vida, não custa nada: é de graça.
PS - No exato momento em que termino a coluna, quatro da tarde de segunda-feira, passa em frente à minha casa um bloco evangélico; rapazes e moças dançando na mais rigorosa ordem e, na camiseta amarela, o comercial: "Vem pra Jesus".
Fala sério.


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