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A alegria é de graça
DANUZA LEÃO
Colunista da Folha
Custou, mas caiu a minha
ficha: o Carnaval não morreu. Continua vivo, vivíssimo, só
que mudou de estilo.
Durante o Carnaval, em qualquer cidade do Brasil, quando e
onde menos se espera, pode surgir um bloco com um monte de
gente atrás cantando e dançando.
Esse bloco ou foi organizado antes, com uma pequena banda, ou
surge por acaso. É assim: num botequim, alguém começa a cantarolar um samba antigo, faz o ritmo com uma caixa de fósforos,
outro alguém acompanha batendo com a faca num prato, as pessoas vão se juntando em volta; um
chope aqui, outro ali, e, daí a pouco, está rolando. Quanto custa isso? Quase nada: com animação e
uns trocados para tomar uma bebida, a festa está pronta.
O mundo se divide em dois grupos: os que se esbaldam e os que
pagam para assistir - uma espécie de voyeurismo. No caso, tentando pegar uma carona na alegria dos outros.
Isso acontece também no maior
espetáculo do Carnaval, que é o
desfile das escolas de samba;
quem desfila paga um dinheirinho -pouco- pela fantasia. Para eles, o Carnaval já começa em
novembro/dezembro nos ensaios. No dia do desfile, acabam-se de tanto sambar, enquanto os
que compraram um lugar na arquibancada ou conseguiram convite para um camarote com bufê e
bebida acham que estão participando da festa, sem perceber que
são apenas espectadores de um
espetáculo. Faz parte deste segundo grupo, também, a necessidade
de se exibir. Nenhum álcool e nenhuma droga anima mais essa
gente do que as câmeras de televisão -é constrangedor ver a cena
da falsa animação quando surge
um fotógrafo.
Eles pegam o carro, o helicóptero, o avião, o que for, para ir onde
ouviram falar que as coisas estão
"acontecendo". Hospedam-se
nos hotéis mais luxuosos e gastam
fortunas procurando pelo
que não têm: a alegria. Em Salvador, pagam caro por uma mortalha para terem o direito de sambar atrás do trio elétrico de um famoso, enquanto a turma da folia
vai mais atrás, de bermuda e camiseta, divertindo-se sem gastar
um centavo.
O Carnaval virou um grande
empreendimento comercial. Por
isso perdeu a graça. Mas o do Rio
é cheio de surpresas: domingo,
em plena praia de Ipanema, surgiu, não se sabe de onde, um bloco com um caminhão de som modesto. O samba fazia críticas ao
presidente Bush e à nossa competente governadora do Estado, falando dos últimos acontecimentos da cidade naquele tradicional
deboche carioca/carnavalesco; folhetos foram distribuídos com a
letra, as pessoas foram atrás cantando, o Carnaval aconteceu e os
gringos dos hotéis de luxo enlouqueceram. Isso sem ensaio, sem
coreografia e sem patrocínio
-um show de alegria e espontaneidade. Detalhe: absolutamente
familiar. Esse bloco cruzou com
outros dois, o SOS Iraque e o Paz e
Amor. A confraternização foi geral.
Dali, os carnavalescos foram dar
um mergulho no mar, depois ficaram na areia dando risada, comendo churrasquinho e tomando água de coco. Esses se divertiram pra valer - e de verdade.
Quem circulou pelas ruas do
Rio viu, e quem ficou em casa
vendo televisão -e prestou atenção- também: a animação e a
alegria continuam as mesmas, só
que trocaram de lugar. Para cair
no samba, é só engatar atrás de
um desses blocos que surgem de
uma esquina qualquer, inesperadamente.
A alegria, como as melhores coisas da vida, não custa nada: é de
graça.
PS - No exato momento em
que termino a coluna, quatro da
tarde de segunda-feira, passa em
frente à minha casa um bloco
evangélico; rapazes e moças dançando na mais rigorosa ordem e,
na camiseta amarela, o comercial:
"Vem pra Jesus".
Fala sério.
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