São Paulo, quinta-feira, 04 de abril de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

Do ócio ao batente num passe de vírgula

"Vírgula é para respirar. Cada vez que se respira, coloca-se uma vírgula." De Oiapoque (AP) a Chuí (RS), todos já ouvimos essa definição "científica" numa aula de português.
Fora verdadeira a assertiva, que seria dos asmáticos? Escreveriam uma palavra e uma vírgula, uma palavra e uma vírgula, uma palavra e uma vírgula. E, se a palavra fosse muito comprida, poriam uma vírgula no meio dela.
A vírgula não funciona como bálsamo pulmonar, mas como instrumento sintático e estilístico, que se emprega de acordo com certos preceitos. Entre sujeito e verbo, por exemplo, não há vírgula, por mais longo que seja o sujeito. A razão da inexistência da vírgula é simples: sujeito e verbo têm relação sintática direta (o verbo concorda com o sujeito) e, se estão lado a lado, é inútil separá-los.
Inútil e perigoso, perigosíssimo. Em "Dorme minha pequena!", "minha pequena" é sujeito; com uma vírgula ("Dorme, minha pequena!"), transforma-se em vocativo. Tradução: deixa-se de afirmar que minha pequena dorme e passa-se a pedir-lhe ou ordenar-lhe que durma.
Antes que alguém pergunte se não seria obrigatório empregar a forma "durma" para que houvesse ordem ou pedido, é bom lembrar que "dorme" é forma imperativa, da segunda pessoa do singular (tu), e "durma", também imperativa, é da terceira pessoa do singular (você, senhor/a etc.).
Morais da história: a) o sujeito não é separado do verbo por vírgula; b) o vocativo é sempre isolado por vírgula(s).
Por falar em vocativo, a torcida do Palmeiras resolveu homenagear o jogador Alex pelo antológico gol que o meia marcou contra o São Paulo, há duas semanas. A homenagem-provocação (o cartaz foi posto em frente ao centro de treinamento do Tricolor) começa com a "narração" do lance e termina com um agradecimento: "Obrigado mestre Alex". Não faltou nada? Faltou a vírgula, obrigatória depois de "Alex", vocativo. Em nome da beleza do lance, corrijamos o agradecimento: "Obrigado, mestre Alex".
Agora, peço-lhe que leia este trecho, transcrito (literalmente) de uma de nossas revistas semanais: "Houve uma época em que os ricos não trabalhavam para ter tempo de desfrutar a riqueza". Leia de novo. De acordo com a frase, os ricos trabalhavam? Parece que sim, e a finalidade do trabalho não era ter tempo de desfrutar a riqueza. Era outra, que poderia ser definida na sequência do texto. E como seguia o texto? Assim: "A aristocracia de Florença usava a riqueza para aproveitar a vida". Como se vê, a intenção é afirmar que os ricos não trabalhavam, mas isso só fica claro quando se lê a segunda passagem.
Agora, coloque uma vírgula depois de "trabalhavam": "Houve uma época em que os ricos não trabalhavam, para ter tempo de desfrutar a riqueza". Leia de novo. Alguma dúvida sobre o que se diz? Parece que não. Agora, fica mais do que claro que os ricos não trabalhavam; dedicavam-se a fruir das delícias da vida.
"Vírgula é para respirar..." Não é. Uma mísera vírgula (ou a falta de uma) pode mudar o sentido do texto, ou, no mínimo, dificultar a imediata compreensão. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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