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RUBEM ALVES
O espectador
A cena doeu-me mais que a
dor na coluna. O que foi um
benefício. Esqueci-me da dor na
coluna e concentrei-me na dor da
cena. Até o tenente Lino se esqueceria da sua dor de dentes. A cena: uma deputada, representante
do povo, sacudindo-se, oferecendo-se como espetáculo para que
todo o Brasil visse sua improvisada "dança do deboche", indiferente à humilhação que o povo
sente diante da impunidade.
Para mim aquela dança se configurou como uma quebra do decoro parlamentar por seu grotesco estético. Barreto Pinto por
muito menos foi cassado. Seu
crime: deixou-se fotografar de
cueca e sobrecasaca. Os deputados e senadores de então não
suportaram a vergonha e ele perdeu o mandato.
Alguns se horrorizaram com a
cena. Eu me horrorizei por outra
coisa: ao contemplá-la dou-me
conta de que sou um cidadão impotente. Nada posso fazer. Estou
condenado a ser um mero espectador. Resta-me contemplar a
dançarina e o seu corpo de balé.
As revelações sem-fim já não
surpreendem. São variações sobre
um tema antigo. Por isso meu
pensamento não se ocupa delas.
Sinto apenas um espanto passageiro. Alguns têm a esperança de
que, ao final de um longo processo de purificação, a democracia
será finalmente lavada dos excrementos que a cobrem. Descreio.
Concordo mesmo é com a sabedoria de Jesus: "É inútil costurar remendo novo nos buracos de um
tecido podre. Pois o tecido novo
encolhe e arrebenta o tecido podre, ficando seus buracos maiores
ainda." As revelações nos mostram os buracos. Acontece que os
buracos não são o problema. O
problema está no tecido podre.
Nossa democracia é tecido podre. Palavra vazia. Coisa morta.
Casca de cigarra. Somente os ingênuos acreditam nela.
A idéia da democracia é linda: o
poder pertence ao povo. Numa
pequena cidade, esse ideal pode
ser realizado de forma simples:
reúnem-se os cidadãos numa praça e eles tomam as decisões diretamente. Mas, em se tratando de
um país, é impossível reunir os
seus cidadãos numa grande assembléia. Assim, criou-se um artifício: as decisões são tomadas por
pessoas de confiança que o povo
elege para representá-lo.
Mas, para que isso aconteça, é
preciso que o povo abra mão do
seu poder para, a seguir, transferi-lo aos seus representantes que
irão então exercê-lo. Assim, ao
votar, eu aceito ser castrado, esvaziado do meu poder, enquanto o
candidato em que votei passa a
ser detentor da potência que antes era minha. Poder do povo ou
castração do povo? Eu mesmo,
que votei, fico agora sem poder. Se
tentar exercer o meu poder diretamente, serei preso como subversivo. Sem poder, resta-me contemplar o espetáculo. Vejo a dança. Nada posso fazer. Cortaram-me as mãos. Sobraram apenas os
meus olhos.
Trocadas as palavras antigas
por palavras modernas, dir-se-ia
que Santo Agostinho, há 1.500
anos, era um comentarista da política brasileira. "Que são os bandos de ladrões senão pequenos
reinos? Pois o bando é formado
por homens; é governado pela autoridade de um príncipe; é mantido coeso por um contrato social; e
os produtos dos saques são divididos segundo leis aceitas por todos.
Se, pela inércia de homens fracos,
este mal cresce ao ponto de se
apropriar de lugares, estabelecer
moradas, apossar-se de cidades e
subjugar povos, ele passa a ter o
nome de reino, porque agora ele
realmente o é, não por dele ter sido eliminada a corrupção, mas
porque a ela foi acrescentada a
impunidade."
Não me entusiasmo com o remendo novo que vai ser costurado sobre os buracos porque sei
que o tecido podre vai continuar.
O que desejo é o meu poder de
volta. Quero ter o poder para tirar
do palco os bailarinos no momento mesmo da sua dança...
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