São Paulo, terça-feira, 04 de abril de 2006

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RUBEM ALVES

O espectador

A cena doeu-me mais que a dor na coluna. O que foi um benefício. Esqueci-me da dor na coluna e concentrei-me na dor da cena. Até o tenente Lino se esqueceria da sua dor de dentes. A cena: uma deputada, representante do povo, sacudindo-se, oferecendo-se como espetáculo para que todo o Brasil visse sua improvisada "dança do deboche", indiferente à humilhação que o povo sente diante da impunidade.
Para mim aquela dança se configurou como uma quebra do decoro parlamentar por seu grotesco estético. Barreto Pinto por muito menos foi cassado. Seu crime: deixou-se fotografar de cueca e sobrecasaca. Os deputados e senadores de então não suportaram a vergonha e ele perdeu o mandato.
Alguns se horrorizaram com a cena. Eu me horrorizei por outra coisa: ao contemplá-la dou-me conta de que sou um cidadão impotente. Nada posso fazer. Estou condenado a ser um mero espectador. Resta-me contemplar a dançarina e o seu corpo de balé.
As revelações sem-fim já não surpreendem. São variações sobre um tema antigo. Por isso meu pensamento não se ocupa delas. Sinto apenas um espanto passageiro. Alguns têm a esperança de que, ao final de um longo processo de purificação, a democracia será finalmente lavada dos excrementos que a cobrem. Descreio. Concordo mesmo é com a sabedoria de Jesus: "É inútil costurar remendo novo nos buracos de um tecido podre. Pois o tecido novo encolhe e arrebenta o tecido podre, ficando seus buracos maiores ainda." As revelações nos mostram os buracos. Acontece que os buracos não são o problema. O problema está no tecido podre.
Nossa democracia é tecido podre. Palavra vazia. Coisa morta. Casca de cigarra. Somente os ingênuos acreditam nela.
A idéia da democracia é linda: o poder pertence ao povo. Numa pequena cidade, esse ideal pode ser realizado de forma simples: reúnem-se os cidadãos numa praça e eles tomam as decisões diretamente. Mas, em se tratando de um país, é impossível reunir os seus cidadãos numa grande assembléia. Assim, criou-se um artifício: as decisões são tomadas por pessoas de confiança que o povo elege para representá-lo.
Mas, para que isso aconteça, é preciso que o povo abra mão do seu poder para, a seguir, transferi-lo aos seus representantes que irão então exercê-lo. Assim, ao votar, eu aceito ser castrado, esvaziado do meu poder, enquanto o candidato em que votei passa a ser detentor da potência que antes era minha. Poder do povo ou castração do povo? Eu mesmo, que votei, fico agora sem poder. Se tentar exercer o meu poder diretamente, serei preso como subversivo. Sem poder, resta-me contemplar o espetáculo. Vejo a dança. Nada posso fazer. Cortaram-me as mãos. Sobraram apenas os meus olhos.
Trocadas as palavras antigas por palavras modernas, dir-se-ia que Santo Agostinho, há 1.500 anos, era um comentarista da política brasileira. "Que são os bandos de ladrões senão pequenos reinos? Pois o bando é formado por homens; é governado pela autoridade de um príncipe; é mantido coeso por um contrato social; e os produtos dos saques são divididos segundo leis aceitas por todos. Se, pela inércia de homens fracos, este mal cresce ao ponto de se apropriar de lugares, estabelecer moradas, apossar-se de cidades e subjugar povos, ele passa a ter o nome de reino, porque agora ele realmente o é, não por dele ter sido eliminada a corrupção, mas porque a ela foi acrescentada a impunidade."
Não me entusiasmo com o remendo novo que vai ser costurado sobre os buracos porque sei que o tecido podre vai continuar. O que desejo é o meu poder de volta. Quero ter o poder para tirar do palco os bailarinos no momento mesmo da sua dança...


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