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RUBEM ALVES
Estou bem de saúde...
A pessoa que falava com
o médico era uma mulher.
Ela iria morrer e sabia
disso. Era minha amiga
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AO LER meu último artigo muitos amigos concluíram que eu
estava morrendo e ficaram
aflitos. Também pudera, o artigo foi
escrito na primeira pessoa... Peço
perdão. Não foi de propósito.
Mas a culpa não foi minha. Foi do
jornal. O jornal dá um espaço definido ao escritor, no meu caso 2.900 toques. Mas a cabeça não tem um contador de toques. Vou escrevendo.
Depois de escrever peço ao computador que me diga quantos toques há
no meu artigo. Ele responde: 3.486.
O que significa que tenho de cortar.
Releio o artigo e vou cortando. Pois
foi isso que aconteceu: tive de cortar
a explicação inicial para que o artigo
ficasse dentro dos limites. Nessa explicação eu contava como é que ele
havia nascido. Nasceu de um pedido
de um amigo, médico. Ele me disse
que o Conselho Federal de Medicina
estava interessado em produzir uma
literatura curta, incisiva, poética, sobre questões éticas e de relacionamento médico-paciente, para ser
distribuída entre os médicos. Então
ele me perguntou: "Rubem, você pode escrever um texto sobre um médico diante de uma pessoa que vai
morrer?"
Eu e esse médico temos tido longas conversas sobre o morrer. Um
médico e um pastor evadido têm
muitas experiências a compartilhar.
Como é o caso do menininho que ia
morrer e apertava a sua mão dizendo: "Tio, é tão difícil morrer. Me ajude a morrer..." Contou-me um outro
caso que produz sorrisos. Nada tem
a ver com a morte. Tem a ver com o
amor. Eu o relato pela sua beleza.
Ele era médico num leprosário. As
enfermeiras eram freiras. Estariam
ali pelo resto de suas vidas. Aí uma
delas teve uma infecção urinária.
Teve de fazer um exame de urina,
rotina médica. O exame deu o que se
esperava. Com algo extraordinário,
jamais imaginado: a urina da freira
estava cheia de espermatozóides. O
amor é como o capim, cresce até nas
pedras. Se você fosse o médico laboratorista o que é que você faria? Colocaria essa informação na folha
com os resultados do exame? Pelo
que entendi o laboratorista não colocou... A verdade, por vezes, é mais
mortífera que um punhal. Como
disse o apóstolo Paulo, é preciso que
a verdade seja dita ou silenciada em
função do amor. A verdade se subordina ao amor.
Na primeira versão do artigo a
pessoa que falava com o médico era
uma mulher porque foi assim que
aconteceu. Ela iria morrer e sabia
disso. Era minha amiga. Fui visitá-la. Cheguei à porta do quarto. Ela estava sozinha, deitada, voltada para a
janela. Percebeu a minha presença.
"Rubem, venha mais perto..." Assentei-me diante dela em silêncio. Aí ela
me fez a terrível pergunta: "Rubem,
será que eu escapo dessa?" Eu poderia ter mentido: "É claro que você vai
escapar. Você vai ficar boa logo..."
Com isso eu me livraria da sua terrível pergunta. Mas ela saberia que eu
estava mentindo. Poderia, ao contrário, ter dito a verdade: "Não, você
não vai escapar. Você vai morrer..."
E com isso se criaria uma enorme
distância entre nós. Percebi que sua
pergunta brotava de um abismo de
medo e solidão que enchia a sua alma. Aí a resposta me veio: "Você está
com medo de morrer. Eu também
tenho medo de morrer..." Conversamos então longamente sobre nossos
medos, duas pessoas unidas pelo fato de que ambas têm medo de morrer. O seu maior medo era medo da
saudade: lá num outro mundo, tão
longe das pessoas que amava... Foi
dessa experiência que o artigo nasceu. Duas semanas depois ela morreu. Mas eu fiquei vivo para contar a
estória...
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