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ENTREVISTA/LUÍS ROBERTO BARROSO
Constitucionalista diz que lei ampara ortotanásia no país
Para Luís Roberto Barroso, interpretação do Código Penal deve ser realizada à luz de princípios como o da dignidade humana
FOLHA - O que é exatamente ortotanásia?
LUÍS ROBERTO BARROSO - Nessa
fronteira em que a medicina se
interpõe entre a vida e a morte,
você tem quatro possibilidades
importantes a considerar: limitação do tratamento, cuidado
paliativo, suicídio assistido e
eutanásia propriamente dita.
A ortotanásia se refere às
duas primeiras, que ocorrem
nos casos em que não há mais
possibilidade de cura, e o tratamento apenas prolongaria a vida, por vezes indefinidamente
e com grande sofrimento.
A possibilidade de limitar o
tratamento é interromper a
medicação ou deixar de conectar a pessoa a aparelho, mesmo
que isso eventualmente possa
trazer a morte quando já não
haja mais sentido em prolongar
aquela vida.
O cuidado paliativo ocorre
quando a medicina, mesmo não
podendo curar, deve ter a preocupação de evitar, o quanto
possível, o sofrimento das pessoas. Portanto, a opção pela limitação do tratamento ou apenas pelo cuidado paliativo, elas
integram essa idéia geral do
que seria uma ortotanásia, que
significa, etimologicamente, a
morte no tempo certo.
O suicídio assistido é quando
a própria pessoa tira sua vida,
diante de uma situação de
grande sofrimento irreversível,
com a ajuda de terceiro, geralmente um médico.
A última dessas quatro categorias é a eutanásia: a ação médica intencional, voltada para
apressar a morte de uma pessoa que esteja numa situação
médica incurável, de grande sofrimento.
FOLHA - Como esse tema é tratado
no mundo?
BARROSO - A limitação do tratamento e o cuidado paliativo são
considerados práticas médicas
éticas e até recomendáveis em
diferentes partes do mundo.
Têm o apoio da Associação Médica Mundial, do Conselho Europeu, da Corte Européia de Direitos Humanos e de supremas cortes de diferentes países,
entre os quais Canadá, Estados
Unidos e Reino Unido. É uma
prática aceita de maneira tão
ampla que a própria Igreja Católica, que tem uma posição
conservadora nas questões que
envolvem a preservação da vida, tem uma encíclica, de 1995,
que considera legítima a suspensão do tratamento.
Já o suicídio assistido e a eutanásia são práticas condenadas na maior parte dos países.
Nos EUA, cada Estado tem
sua própria legislação penal, ao
contrário do Brasil, no qual o
Código Penal é nacional. O Estado do Oregon aprovou uma
lei disciplinando o suicídio assistido e a eutanásia. Conhecida como Lei da Morte Digna,
foi contestada na Suprema
Corte, que por seis votos a três
considerou-a constitucional.
Em dois outros casos, julgados em 1997, foram questionadas leis de Estados que proibiam o suicídio assistido e a eutanásia, e aí a Corte considerou,
por unanimidade, que elas
eram constitucionais.
FOLHA - E no Brasil?
BARROSO - A legislação penal
brasileira não faz qualquer distinção entre essas quatro categorias a que eu me referi. Assim, tanto a limitação do tratamento como a eutanásia estão
sujeitas a enquadramento como crime de homicídio.
E foi essa interpretação que
levou o procurador da República [Wellington de Oliveira] a
formular a recomendação [para que o CFM suspendesse a resolução]. Portanto um médico está sujeito a processo por crime de homicídio, seja por atuar
praticando a eutanásia ou ajudando no suicídio assistido, seja por omitir tratamento, como
é o caso da limitação do tratamento ou do cuidado paliativo.
A resolução do conselho não
é impositiva de determinada
conduta ao médico, apenas permite a ele deixar de prover tratamento se considerar que essa
é a opção medicamente adequada, sobretudo na hipótese
em que o paciente ou alguém
que o representasse validamente tenha feito a solicitação.
É interessante observar que,
além do CFM, diversas leis estaduais continham normas referentes à ortotanásia.
Há casos em São Paulo, Pernambuco,
Distrito Federal, Paraná e Rio.
O único problema é que no Brasil os Estados não têm competência para legislar sobre direito penal. Se considerarmos que
o que a resolução do CFM e as
leis estaduais fizeram foi tentar
modificar o Código Penal, certamente são documentos inidôneos para esse fim -de modo que uma interpretação ortodoxa, tradicional, concluiria
pela inconstitucionalidade,
tanto das leis estaduais quanto
dessa resolução.
Portanto, uma tese melhor é
que o Código Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, sob princípios como o da dignidade da pessoa humana e
o da liberdade.
A liberdade envolve direito à
autodeterminação, desde que o
exercício dessa liberdade seja
lúcido e não interfira no direito
de uma outra pessoa. O segundo princípio que legitima a resolução é o da dignidade da pessoa humana, que compreende,
além do direito a uma vida, o direito a uma morte digna.
Não há nenhuma dúvida,
nem ética nem jurídica, à luz
dos valores sociais e dos princípios constitucionais, de que a
ortotanásia é legítima. A resolução é uma interpretação adequada da Constituição.
Suicídio assistido e eutanásia
envolvem riscos importantes,
portanto devem ser cercados
de uma cautela muito particular. Porém, como disse, ética e
juridicamente elas podem realizar adequadamente valores
constitucionais, pelas mesmas
razões, de respeitar a vontade
do paciente, quando ela possa
ser manifestada, e o sofrimento
seja insuportável.
Sou a favor da eutanásia e do
suicídio assistido, se tomadas
certas cautelas.
FOLHA - A Constituição brasileira
permite a eutanásia e o suicídio assistido?
BARROSO - Eu acho. Mas essa é
uma matéria sobre a qual o legislador ordinário deveria pronunciar-se. Não creio que haja
impedimento constitucional.
FOLHA - Qual a discussão filosófica
por trás desse tema?
BARROSO - Há um debate que
vai marcar a nossa e as próximas gerações, que é acerca da
bioética e do biodireito, os limites da intervenção humana e
médica, da engenharia genética
nos processos patológicos e na
criação humana.
Na ortotanásia e na eutanásia, o debate filosófico é sobre a
dignidade da pessoa humana e
a sacralidade da vida. Quando a
filosofia e o direito protegem a
vida, é preciso saber: protegem
qualquer vida, qualquer qualidade de vida e a qualquer preço? Acho que não.
Além de determinado limite
de sofrimento, de perda da integridade física, uma pessoa deve ter o direito de escolher entre a vida e a morte.
Mas a morte integra um espaço desconhecido, e nunca haverá como superar o tipo de debate filosófico que ela envolve.
Sempre que as pessoas estejam
diante de uma matéria que envolva o que se denomina de desacordo moral razoável, ou seja, quando pensam de modo radicalmente oposto, o papel do
Estado e do direito deve ser o
de respeitar a autonomia da
vontade de cada um.
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