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ARTIGO
Com Império Serrano na avenida
Sob a chuva durante a madrugada, escola homenageou Carmen Miranda
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
A última vez que eu me vira
na pista de um desfile das escolas de samba fora na avenida
Presidente Vargas, em 1968, e,
mesmo assim, a trabalho, como
repórter da revista "Manchete". Grande noite, que começou
cedo, na antiga praça 11, e, umas
mil mulatas depois, foi até às
10h ou 11h da manhã seguinte,
na Candelária, sob um sol de
derreter a própria.
Todas as escolas saíam no
mesmo dia e grande parte das
atividades se dava no chão, com
os pés descalços ou de sapato de
fivela mandando ver no asfalto,
ao nível do mar. Não havia limite de tempo, e um passista podia se exibir durante dez minutos diante do relógio da Central. Era extenuante, inclusive
para a imprensa -mas, quando
se tem 20 anos, como eu na
época, quem fica cansado?
Bem, 40 anos depois, em
2008, cá estou eu de novo na
avenida, só que agora no sambódromo e no desfile da divisão
de acesso, na noite de sábado. E
não mais como repórter, mas
como convidado do Império
Serrano, que tentará voltar ao
lugar que lhe cabe no grupo
principal das escolas de samba.
Detentor de nove títulos e
berço de grandes nomes do
samba, como Silas de Oliveira,
Mano Décio da Viola e dona
Ivone Lara, o Império fora rebaixado em 2007 depois de um
atribulado desfile em que tudo
dera errado. Para 2008, a escola
recuperara um tema antigo,
campeão de 1972, sobre Carmen Miranda, produzira um
samba novo (e melhor) e refizera o enredo, valendo-se de dados que a historiadora Rachel
Valença recolhera em meu livro -"Carmen - Uma Biografia"- daí a razão do convite.
O tênis, eu já tinha. A calça
branca, comprei uma de enfermeiro naquelas lojas onde se
vendem uniformes. E a escola
me presenteou com uma linda
camiseta de listras verde-amarelas, com a estampa de Carmen no peito e, nas costas, a
identificação de "Apoio".
Significaria que, durante o
desfile, eu teria passe livre para
ir aonde quisesse, desde que me
limitasse às laterais das alas e
tentasse não dar um calço num
tocador de chocalho ou não ser
atropelado por um carro alegórico. E eu próprio já decidira ficar longe da rainha da bateria,
minha leitora Quitéria Chagas,
cuja visão é mesmo perturbadora. Mas não estava proibido
de jogar beijos para as "arquibas" ou para os camarotes.
O Império seria a última das
escolas a desfilar -na melhor
das hipóteses, adentraria a
Marquês de Sapucaí às cinco da
matina. E a chuva já caía firme
por volta de três da manhã
quando cheguei à concentração
nas proximidades do Piranhão,
que é como chamamos o prédio
da prefeitura. Ali já estavam
Rachel, o cantor Jorginho do
Império, os carnavalescos Renato Lage e Márcia Lávia, e a
maioria dos 2.700 componentes, sob a chuva que começara
horas antes, e olhe que eles tinham chegado muito cedo.
É verdade que chovia para todas as escolas, mas há um consenso de que, pior do que chover durante o desfile, é chover
antes -ensopa as fantasias, interfere nas alegorias, desafina
os instrumentos e, pior, abate o
moral. E o que choveu pelas horas seguintes foi como se São
Pedro tivesse uma marcação
especial contra o Império.
Eu próprio, com as meias encharcadas, água até dentro dos
bolsos e uma espessa cachoeira
nos óculos, já começava a me
perguntar o que estava fazendo
ali, às vésperas dos 60 anos, de
pé havia horas, as pernas já duras e sem o dinamismo de outrora, e ameaçando uma tosse
de cachorro. O sensato era alegar um motivo de força maior,
dizer boa sorte e tchau, e ir assistir ao desfile em casa, com
uma manta quadriculada sobre
os joelhos e uma bolsa de água
quente nos pés.
Foi então que olhei em torno
e vi Carlos, Renata, João Paulo,
Luiza, Pim, Manza, Marcão,
Lúli e os outros jovens com
quem tinha ido no ônibus para
o Sambódromo -uma plêiade
de rapazes e moças da zona sul,
entre 20 e 27 anos, todos inteligentes e bonitos, com suas fantasias de dados e naipes de baralho evocando a glória de Carmen Miranda nos cassinos.
Mais à frente, estava a ala dos
Zé Cariocas; perto dali, a que
representava Carmen no rádio
e nos discos; na outra esquina, a
ala de Hollywood e, equilibrando-se no carro da Broadway, os
meninos do elenco do musical
"Saçaricando". Todos subitamente tão imperianos quanto o
pessoal da Serrinha e de Madureira, que compõe o grosso da
escola e sofre e luta por ela o
ano inteiro.
Todos ignorando a chuva e
cantando o samba, antes mesmo que a bateria entrasse em
cena -na certeza de que a única maneira de fazer o Império
subir era "dizendo" no gogó e
no pé, com um entusiasmo que
não podia dar confiança à chuva, ao vento ou ao cansaço.
O alto-falante anunciou a entrada do Império Serrano na
Marquês de Sapucaí. Eram cinco e meia da manhã. Os garotos
saíram cantando o samba como
se estivessem indo para uma
batalha em que o único resultado possível era vencer ou vencer. Ao observá-los, eu não sabia se o que escorria de seus
olhos eram lágrimas ou a chuva. Empolgado, fui atrás.
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