São Paulo, terça-feira, 05 de maio de 2009

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CECILIA GIANNETTI

DNA suburbano


Irmão da minha avó, Alípio faz jogo duro: só permite casamento se o homem largar o trabalho com o mulherio

PROCURO MEU REFLEXO numa poça do quintal da casa da infância, num subúrbio carioca que antigamente ficava sem luz sempre que chovia. E faltava água constantemente, sem maiores explicações. Perfeitamente tradicional, meu subúrbio de infância, que revisito com uma ponta de saudade que me espanta.
O reflexo n’água não sou eu; é um cinema na poça do quintal, que exibe histórias passadas há tempos, contadas a mim em versões que diferem umas das outras, dependendo do parente que as relata.
Esta é a minha versão para uma das histórias de que mais gosto: tem minha avó, ainda jovem, vestida com seu glorioso uniforme da Telephone Company of Brazil, nas primeiras décadas do século passado.
Tem meu avô, que está prestes a conhecê-la e ter sua vida completamente mudada. Ela trabalha na Telefônica e é o tesouro da família, única filha a ter se interessado pelos estudos e também talentosa costureira. Ele trabalha com mulheres na noite. Mulheres que ganham a rua e trazem de volta para uma casa de paredes sujas o dinheiro. Meu avô, terno branco e chapéu, pega as notas.
O irmão de minha avó, Alípio, é colega de futebol desse homem malvisto. Certa noite, nas festividades pela chegada da iluminação elétrica às ruas, Alípio encontra meu avô sozinho e muito trôpego, próximo ao Mangue. Toma-lhe pelo braço e o levanta até apoiá-lo num ombro.
Como o homem não consegue balbuciar o endereço onde mora (um ano antes, o lança-perfume estreara no carnaval do Rio, tendo causado tamanha boa impressão que alguns não viam problema em estender seu uso a outras celebrações), Alípio o arrasta para a casa na Praça Onze, em que vive com as irmãs, a mãe e também com as tias gordas importadas, autênticas portuguesas. Desova o bêbedo no sofá e toma um gole de cachaça como forma de se preparar para defender a presença do amigo, caso necessite, contra eventuais protestos das tias.
Pela manhã, a moça que um dia será minha avó acorda e dá com o sujeito na sala. Corre para Alípio: - Quem é este traste?
A moça e as tias, que acordam em rebuliço, aceitam a explicação de bom samaritano de Alípio. O traste é convidado a se sentar para tomar café com os irmãos, minha avó, Alípio, minha bisavó Carola, lavadeira portuguesa, as tias de olhos bem arregalados, contrariadas, buços trêmulos.
Ele come o pão, bebe o café-com-leite. Depois, enquanto ajuda a tirar da mesa a louça suja, agradece pela guarida e pela refeição. Mas completa com o que soa como insulto: comenta timidamente que gostou muito de minha futura avó. Carola bota o homem porta afora porque sabe bem o que ele faz da vida.
Desde então, apesar do desfecho abrupto da visita, ele volta todos os dias às 17h, quando Carola se ausenta para entregar roupa lavada às casas perto dos trilhos do trem.
A costureira telefonista simpatiza com aquela insistência; o rosto do homem não lhe parece mais o de um traste. Mas ela não o deixa entrar, conversam pela janela. Ele diz que sente por ela a coisa fulminante sobre a qual leram nos livros. Alípio faz jogo duro: só permite casamento se ele largar o trabalho na praça, com o mulherio. Se tomasse para o futuro o caminho da retidão, esqueceriam de seu passado.
E a telefonista já sente o mesmo pelo sujeito. Que aceita um emprego de sapateiro e nunca mais torna a pegar dinheiro das mulheres largadas. Tudo isso vejo numa poça d’água, antiquíssimos protoplasmas.


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