São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Sem que ninguém ficasse ferido"

O rádio informa que dois homens (que vestiam terno e gravata) invadiram uma agência de fotografias na zona leste de São Paulo, levaram computadores, celulares etc. A notícia terminou assim: "A ocorrência foi registrada no 58º DP, sem que ninguém ficasse ferido".
Que lhe pareceu a conclusão da notícia, caro leitor? Sabemos todos que nossos distritos policiais são uma das tantas evidências de que somos um país atrasado, mas daí a imaginar que se deva destacar o fato de que alguém foi a um DP, registrou ocorrência e saiu de lá são e salvo... Pois é isso que se deduz da leitura/audição literal da conclusão da notícia.
Antes que me esqueça, é bom destacar que não se tratava de boletim ao vivo, com o repórter na rua. O texto foi lido, ou seja, deve ter sido redigido assim.
E lá vamos nós, pela enésima vez, falar da costura, da coesão, da coerência -dos mecanismos de conexão, enfim. Digo sempre (e não me canso de repetir) que de nada adianta não errar na grafia, nos plurais e na flexão verbal, por exemplo, se o texto não tem pé nem cabeça. O grande nó do texto é o nexo, caro leitor. A informação dada em "sem que ninguém ficasse ferido" não se conecta com "A ocorrência foi registrada no 58º DP", mas com a passagem anterior (o relato da invasão).
Posso estar ficando maluco, doido de pedra, varrido, mas acho que uma das prováveis causas dessa incapacidade de redigir com nexo (comuníssima nos textos jornalísticos, sobretudo nos de rádio e TV) é a tecnologia dos dias hoje (o controle remoto, a internet). Explico: o sujeito troca de canal sem parar, entra em mil páginas da internet e depois não é capaz de costurar nada com nada, não sabe onde viu o quê, perde a noção de sincronia, não consegue ver e/ou estabelecer relações entre os fatos etc. A fragmentação parece onipresente.
Bem, qual é a relação que se poderia estabelecer entre o relato da invasão da agência fotográfica e "sem que ninguém ficasse ferido"? Teoricamente, a relação é de concessão, de quebra da normalidade ou da expectativa: num assalto, não é incomum haver feridos; quando não os há, quebra-se essa "normalidade". Pois é esse um dos valores da locução "sem que", também exemplificado em "Foi aprovado sem que estudasse" (= "embora não estudasse").
Convém lembrar que as gramáticas costumam atribuir à locução "sem que" apenas o valor condicional (equivalente a "desde que", "contanto que", "se", "a menos que" etc.), o que se vê neste belo exemplo de Oswald de Andrade (de "Canto de Regresso à Pátria", uma das tantas paródias de "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias): "Não permita Deus que eu morra / Sem que volte para São Paulo / Sem que veja a Rua 15 / E o progresso de São Paulo".
Por fim, já que citamos o 58º DP de São Paulo, é bom aproveitar a ocasião para lembrar que o ordinal relativo ao cardinal 50 é "qüinquagésimo". O "u" da primeira sílaba é pronunciado, como se vê pelo trema que o pobre carrega nas corcovas.
Embora muitas pessoas (a maioria, creio) não pronunciem esse "u" (lêem a sílaba "quin" de "qüinquagésimo" como a de "quindim"), os dicionários e o "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", da Academia Brasileira de Letras, só registram a forma com o trema. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail - inculta@uol.com.br


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