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PASQUALE CIPRO NETO
"Sem que ninguém ficasse ferido"
O rádio informa que
dois homens (que vestiam
terno e gravata) invadiram uma
agência de fotografias na zona
leste de São Paulo, levaram computadores, celulares etc. A notícia
terminou assim: "A ocorrência foi
registrada no 58º DP, sem que
ninguém ficasse ferido".
Que lhe pareceu a conclusão da
notícia, caro leitor? Sabemos todos que nossos distritos policiais
são uma das tantas evidências de
que somos um país atrasado, mas
daí a imaginar que se deva destacar o fato de que alguém foi a um
DP, registrou ocorrência e saiu de
lá são e salvo... Pois é isso que se
deduz da leitura/audição literal
da conclusão da notícia.
Antes que me esqueça, é bom
destacar que não se tratava de
boletim ao vivo, com o repórter
na rua. O texto foi lido, ou seja,
deve ter sido redigido assim.
E lá vamos nós, pela enésima
vez, falar da costura, da coesão,
da coerência -dos mecanismos
de conexão, enfim. Digo sempre
(e não me canso de repetir) que de
nada adianta não errar na grafia,
nos plurais e na flexão verbal, por
exemplo, se o texto não tem pé
nem cabeça. O grande nó do texto
é o nexo, caro leitor. A informação dada em "sem que ninguém
ficasse ferido" não se conecta com
"A ocorrência foi registrada no
58º DP", mas com a passagem anterior (o relato da invasão).
Posso estar ficando maluco,
doido de pedra, varrido, mas
acho que uma das prováveis causas dessa incapacidade de redigir
com nexo (comuníssima nos textos jornalísticos, sobretudo nos de
rádio e TV) é a tecnologia dos
dias hoje (o controle remoto, a internet). Explico: o sujeito troca de
canal sem parar, entra em mil páginas da internet e depois não é
capaz de costurar nada com nada, não sabe onde viu o quê, perde a noção de sincronia, não consegue ver e/ou estabelecer relações
entre os fatos etc. A fragmentação
parece onipresente.
Bem, qual é a relação que se poderia estabelecer entre o relato da
invasão da agência fotográfica e
"sem que ninguém ficasse ferido"? Teoricamente, a relação é de
concessão, de quebra da normalidade ou da expectativa: num assalto, não é incomum haver feridos; quando não os há, quebra-se
essa "normalidade". Pois é esse
um dos valores da locução "sem
que", também exemplificado em
"Foi aprovado sem que estudasse" (= "embora não estudasse").
Convém lembrar que as gramáticas costumam atribuir à locução "sem que" apenas o valor
condicional (equivalente a "desde
que", "contanto que", "se", "a
menos que" etc.), o que se vê neste
belo exemplo de Oswald de Andrade (de "Canto de Regresso à
Pátria", uma das tantas paródias
de "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias): "Não permita Deus
que eu morra / Sem que volte para São Paulo / Sem que veja a Rua
15 / E o progresso de São Paulo".
Por fim, já que citamos o 58º DP
de São Paulo, é bom aproveitar a
ocasião para lembrar que o ordinal relativo ao cardinal 50 é
"qüinquagésimo". O "u" da primeira sílaba é pronunciado, como se vê pelo trema que o pobre
carrega nas corcovas.
Embora muitas pessoas (a
maioria, creio) não pronunciem
esse "u" (lêem a sílaba "quin" de
"qüinquagésimo" como a de
"quindim"), os dicionários e o
"Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", da Academia
Brasileira de Letras, só registram
a forma com o trema. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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