São Paulo, terça-feira, 05 de setembro de 2000


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MARILENE FELINTO

"Eu Tu Eles" e o conselho do ministro para traição

C omo tem aumentado o número de casos de Aids entre mulheres, especialmente entre donas-de-casa de cidades pequenas, o ministro da Saúde, José Serra, alertou para o fato de que esse aumento se deve à infidelidade conjugal masculina.
Serra recomendou muita atenção às mulheres fiéis cujos maridos "pulam a cerca", conforme declaração à Folha (Cotidiano, 01/09): "se elas desconfiarem de que eles têm relações fora de casa, exijam a utilização de preservativos", afirmou.
Confesso que ri ao ler a afirmação do ministro, a quem não faltam boas intenções, devo reconhecer. O problema é que a recomendação aponta não só para um total desconhecimento da dinâmica do casal das classes baixas, como também para uma espécie de tolerância do Estado para com o homem que trai, reforçando a imagem da mulher como resignada guardiã do lar traído.
Essa visão distorcida das realidades do povo é típica do governo FHC (para não falar do fundamento patriarcal e machista das palavras do ministro). Para chegar a essa conclusão, o Ministério da Saúde certamente ignorou aspectos sociais importantes.
Certamente desconhece que, ao exigir camisinha, muita dona-de-casa está sujeita a levar um bofetão do marido traidor e oficialmente "perdoado" pelo Estado. Esqueceu-se de alertar a dona-de-casa interiorana sobre seu direito de se divorciar do marido espancador ou traidor aidético. O ministro fez como se faz na era FHC -trata-se o país não como ele é, mas à imagem e semelhança de seus governantes, um grupo de janotas embevecidos, alienados e aspirantes a grandes estadistas da "mais importante nação da América do Sul".
O fato é que o equívoco do ministro da Saúde lembra outro: a quantidade de bobagens que já disseram sobre o filme "Eu Tu Eles", de Andrucha Waddington, em cartaz em São Paulo.
Adorei o filme baseado na história real da agricultora cearense Marlene Sabóia, que vivia com três maridos sob o mesmo teto.
O trabalho de Waddington é perfeito: o roteiro é preciso, a direção de atores é excelente (Regina Casé, Stênio Garcia, Lima Duarte e Luiz Carlos Vasconcelos).
Mas disseram que a película é feminista, porque faz o "reconhecimento do desejo feminino" no "sertão machista", que é inverossímil porque os personagens não se "questionam" etc.
São opiniões de críticos eruditos da cidade grande, que parecem desconhecer a lógica interna do sertão, acostumados à monotonia da família nuclear urbana e de classe média.
O que o cineasta faz com a história do quadrilátero amoroso é radicalizá-la exatamente naquilo que ela tem de insólito: a poligamia no seio de uma sociedade sertaneja tradicional. A história vira fábula, mito. E o discurso mítico (citando Alfredo Bosi) só consegue resolver as contradições porque emprega de um modo mais radical a lógica subjacente à organização social.
Foi também isso que fizeram, em literatura, os grandes escritores do sertão, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Os personagens de "Eu Tu Eles" são tão verossímeis, na aceitação calada do destino que lhes cabe no quadrilátero, quanto a família quase muda de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.
Não existe machismo ou feminismo no sertão de "Eu Tu Eles", existe pacto de sobrevivência. O drama filmado por Andrucha Waddington mostra isso com poesia e naturalidade.
Feminismo só existe na metrópole -e precisa existir, ao menos às vezes, como uma espécie de vacina contra a doença epidêmica do superpoder delegado ao macho branco ocidental. Só não vê quem não quer.


E-mail - mfelinto@uol.com.br


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