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MARILENE FELINTO
"Eu Tu Eles" e o conselho do ministro para traição
C omo tem aumentado o
número de casos de Aids entre mulheres, especialmente entre
donas-de-casa de cidades pequenas, o ministro da Saúde, José
Serra, alertou para o fato de que
esse aumento se deve à infidelidade conjugal masculina.
Serra recomendou muita atenção às mulheres fiéis cujos maridos "pulam a cerca", conforme
declaração à Folha (Cotidiano,
01/09): "se elas desconfiarem de
que eles têm relações fora de casa,
exijam a utilização de preservativos", afirmou.
Confesso que ri ao ler a afirmação do ministro, a quem não faltam boas intenções, devo reconhecer. O problema é que a recomendação aponta não só para
um total desconhecimento da dinâmica do casal das classes baixas, como também para uma espécie de tolerância do Estado para com o homem que trai, reforçando a imagem da mulher como
resignada guardiã do lar traído.
Essa visão distorcida das realidades do povo é típica do governo
FHC (para não falar do fundamento patriarcal e machista das
palavras do ministro). Para chegar a essa conclusão, o Ministério
da Saúde certamente ignorou aspectos sociais importantes.
Certamente desconhece que, ao
exigir camisinha, muita dona-de-casa está sujeita a levar um bofetão do marido traidor e oficialmente "perdoado" pelo Estado.
Esqueceu-se de alertar a dona-de-casa interiorana sobre seu direito
de se divorciar do marido espancador ou traidor aidético. O ministro fez como se faz na era FHC
-trata-se o país não como ele é,
mas à imagem e semelhança de
seus governantes, um grupo de janotas embevecidos, alienados e
aspirantes a grandes estadistas da
"mais importante nação da América do Sul".
O fato é que o equívoco do ministro da Saúde lembra outro: a
quantidade de bobagens que já
disseram sobre o filme "Eu Tu
Eles", de Andrucha Waddington,
em cartaz em São Paulo.
Adorei o filme baseado na história real da agricultora cearense
Marlene Sabóia, que vivia com
três maridos sob o mesmo teto.
O trabalho de Waddington é
perfeito: o roteiro é preciso, a direção de atores é excelente (Regina
Casé, Stênio Garcia, Lima Duarte
e Luiz Carlos Vasconcelos).
Mas disseram que a película é
feminista, porque faz o "reconhecimento do desejo feminino" no
"sertão machista", que é inverossímil porque os personagens não
se "questionam" etc.
São opiniões de críticos eruditos
da cidade grande, que parecem
desconhecer a lógica interna do
sertão, acostumados à monotonia
da família nuclear urbana e de
classe média.
O que o cineasta faz com a história do quadrilátero amoroso é
radicalizá-la exatamente naquilo
que ela tem de insólito: a poligamia no seio de uma sociedade sertaneja tradicional. A história vira
fábula, mito. E o discurso mítico
(citando Alfredo Bosi) só consegue resolver as contradições porque emprega de um modo mais
radical a lógica subjacente à organização social.
Foi também isso que fizeram,
em literatura, os grandes escritores do sertão, Graciliano Ramos e
Guimarães Rosa. Os personagens
de "Eu Tu Eles" são tão verossímeis, na aceitação calada do destino que lhes cabe no quadrilátero, quanto a família quase muda
de "Vidas Secas", de Graciliano
Ramos.
Não existe machismo ou feminismo no sertão de "Eu Tu Eles",
existe pacto de sobrevivência. O
drama filmado por Andrucha
Waddington mostra isso com
poesia e naturalidade.
Feminismo só existe na metrópole -e precisa existir, ao menos
às vezes, como uma espécie de vacina contra a doença epidêmica
do superpoder delegado ao macho branco ocidental. Só não vê
quem não quer.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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