São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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Estudante passou véspera em hotel, não usou álcool e saiu despercebido


ALENCAR IZIDORO
AURELIANO BIANCARELLI
CLEIDE FLORESTA
da Reportagem Local

Pouco antes de sair do hotel com a sacola azul, onde estaria carregando a metralhadora, no começo da noite da quarta-feira, Mateus da Costa Meira passou a camisa que iria vestir para o crime. Tinha trazido na bolsa um ferro de passar.
Na noite que antecedeu à "matança no shopping", o estudante ocupou o quarto 915 de um hotel três estrelas da região central de São Paulo. Dormiu numa cama de solteiro com duas reproduções de Monet na cabeceira.
Nas 24 horas que passou no hotel, Meira consumiu seis refrigerantes, duas águas, um filé grelhado e seis chocolates Garoto. Não tomou cerveja nem deixou sinais de que tivesse consumido bebida alcoólica. Nas poucas horas em que ficou fora do hotel, teria comprado a metralhadora que usaria no cinema pouco depois.
Meira registrou-se no Príncipe Hotel, na avenida São João, às 17h10 da terça-feira, dia 2. Preencheu a ficha com seus dados pessoais corretos e subiu para o quarto, que estava com diária promocional de R$ 66. Não saiu aquela noite e, comeu e utilizou um pente e um barbeador. Não fez nenhuma ligação interurbana.
Na quarta-feira, a camareira encontrou-o no corredor por volta das 8h30 e perguntou se poderia arrumar o quarto. O estudante disse que sim, depois não foi mais visto pelos funcionários do hotel.
Na manhã de ontem, a mesma camareira entrou no quarto 915 para arrumá-lo, sem saber que a polícia já tinha estado lá durante a madrugada. "Estava uma desordem. O colchão no chão e um ferro de passar roupas sobre a penteadeira. Tinha uma tesoura de ponta fina, algodão e gaze espalhados pelo carpete. Havia muitas pedrinhas parecidas com miçangas pelo chão e papéis parecidos com os de cartão de crédito. Eu limpei tudo com o aspirador."
O estudante passou pelo hotel tão despercebido como passou pelo curso de medicina e pelo prédio de apartamento onde morava, em Santa Cecília, região central.
Os estudantes que conviviam com ele e os vizinhos do prédio limitaram a descrevê-lo em poucas frases pontuadas de não: "quase não falava", "não gostava de festa", "não tinha namorada".
As pessoas que tiveram contato com o estudante o descrevem como um rapaz triste e que vivia com medo. O zelador do prédio disse que muitas vezes Meira se recusava a abrir a porta do apartamento até para pessoas próximas.
Um funcionário do prédio disse que ele tinha "mania de perseguições". "Achava que tinha gente seguindo ele por toda parte", disse um dos porteiros. Uma noite ele chegou a pedir as chaves da casa de força dizendo que a pessoa que o perseguia estava lá dentro.
A psicóloga da Santa Casa, Patrícia Bellodi, disse que tentou várias vezes marcar consultas com o estudante, mas que ele não atendia nem mesmo o celular.
Meira cursava o sexto ano de medicina da Santa Casa de São Paulo e desde outubro não frequentava as aulas. Em outubro, a família chegou a apresentar um atestado médico de 15 dias.
Suas notas eram medianas. Pensava ser oftalmologista, como o pai. A origem e o sotaque renderam-lhe o apelido de "baiano", que o chateava.
Nos últimos meses, Meira vinha atrasando o condomínio do prédio, R$ 250 por mês, e não pagava a TV a cabo. A polícia suspeita que há meses vinha economizando para a metralhadora e uma pistola que lhe custaram R$ 5.000.
Na faculdade, muitos estudantes se referiram a Meira como "aquele cara que ninguém conhecia, que não falava com ninguém e que sempre era visto sozinho".
Discreto, ele conversava pouco com os colegas e raramente falava da vida pessoal. De fala manso, gosta de computador e de esportes, especialmente triatlo, que reúne corrida, natação e ciclismo.
Meira não frequentava as festas e dificilmente ia à "Toca" -lanchonete da Santa Casa onde os alunos costumam se reunir.
Segundo Ernani Geraldo Rolim, diretor da instituição, no seu histórico escolar há o registro de um único incidente: no quinto ano ele se negou a fazer plantão, prática obrigatória entre os estudantes do quinto e do sexto ano.
Por causa dessa recusa, ele foi encaminhado à Comissão de Apoio Psicológico e Pedagógico.
Foi a comissão que o encaminhou, em abril, ao Repan (Retaguarda Emocional para o Aluno de Medicina), um departamento que dá apoio psicológico aos alunos. Segundo a psicóloga Patrícia, ele tinha dificuldade para se relacionar com pacientes, mas compareceu a uma única sessão.
A faculdade terá de decidir o destino de Meira no curso -ele estava a apenas um mês do final.
Tatiana Regina Criscuolo, 30, que como ele repetiu o quarto ano, diz que desde o primeiro ano ele sempre se manteve distante dos colegas. "No começo, nem cumprimentava os outros."
Ela disse ainda que Meira era rejeitado pelos outros colegas de classe. Segundo ela, ele nunca falou claramente sobre isso, mas ela percebeu que isso o incomodava. "Ele sempre saia de perto quando começavam com brincadeiras."
A estudante também costumava falar com os pais de Meira pelo telefone, que sempre faziam perguntas sobre seu comportamento na escola: "Se ele estava indo as aulas, se estava estudando".
Ela conta ainda que às vezes ficava um tempo sem falar com ele, tentava ligar, mas Meira não respondia. Tatiana chegava a ir ao apartamento dele. "O porteiro falava que ele estava lá, mas que não adiantava chamar."
Segundo Sonia Iaia Vespa da Silva, secretária do quarto ano da faculdade, Meira era um garoto triste. "Às vezes dava a impressão de que ele fazia um curso que não queria, que era imposto."
Moradores e funcionários do edifício onde Meira vivia sozinho disseram conhecê-lo muito pouco e que ele não tinha amigos no local. "Ele era anti-social. A gente quase não tinha contato. Ele não cumprimentava ninguém", afirmou um funcionário da limpeza.
Meira morava havia cerca de três anos no atual apartamento de dois dormitórios cujo aluguel está avaliado em R$ 600. Muitos dos moradores são estudantes e funcionários da Santa Casa.
Meira saía todos os dias do prédio antes das 8h para ir à faculdade. Voltava depois das 11h para almoçar e, logo no início da tarde, saía novamente. O estudante só retornava no final da tarde.


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