São Paulo, terça-feira, 05 de novembro de 2002

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MARILENE FELINTO

Brasília e Febem paulista: dois lados da vergonha

Fabrício Klein tinha 18 anos em 1996, quando atropelou e matou, em Brasília, o pedreiro Elias Barboza de Oliveira Júnior. Fabrício é filho do então ministro dos Transportes Odacir Klein (PMDB-RS). O laudo do Instituto de Criminalística confirmou, na época, que o rapaz estava em excesso de velocidade na hora do crime.
Ele vinha de um churrasco onde bebera cerveja. O pai estava a seu lado, no banco do carona. Fabrício e o pai fugiram sem prestar socorro à vítima. Só foram descobertos porque uma testemunha anotou a placa do carro.
Saiu há poucos dias o resultado do caso: Fabrício está livre. Não tem culpa de nada. Não cometeu crime nenhum. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) declarou que ele não pode ser punido porque o crime "prescreveu", passou da época de ser julgado (quatro anos em caso de menores de 21 anos).
Era melhor que a sentença fosse mais clara: Fabrício não pode ser punido porque é filho de poderoso. Fabrício não vai puxar um xadrez porque é filho de rico. É o sistema jurídico brasileiro de sempre, pronto para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo -a favor, sempre, da gente privilegiada.
Não é à toa que os adolescentes das classes altas de Brasília primam pelas erupções primitivas de violência, por demonstrações públicas de barbárie inconcebível: talvez se sintam protegidos, próximos demais que vivem do poder, da atmosfera de privilégio, favor e garantia de impunidade entre poderosos.
Em 1997, os cinco rapazes que incendiaram e mataram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, devem ter seguido esse mesmo raciocínio. Eram todos de classe média: Antônio Novély Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves de Oliveira, Max Rogério Alves, todos com 19 anos na época, e um menor.
Em 17 de outubro último, um garçom foi morto a socos, pontapés e cadeiradas por um grupo de jovens também de Brasília em Porto Seguro (BA). Todos de classe média e universitários: Fernando Ferreira von Sperling, Victor Tadeu Antunes Araújo, Artur Alencar Ferreira de Melo, Mauro Coelho de Souza e Thiago Barroso Marnet, todos com 19 anos, e mais dois adolescentes de 17.
Brasília dá o exemplo da vergonha nacional: a impunidade, a injustiça de classe. "A forma de que a ameaçadora barbárie se reveste hoje", diz Adorno, "é a de, em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se (...) atos que anunciam, conforme sua própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas."
O outro lado da moeda da vergonha nacional é a Febem de São Paulo, que vai de novo ser condenada como instituição no estrangeiro -por maus-tratos e violações de direitos de internos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos, da qual o Brasil é membro) considerou falido o Estado de São Paulo, sua Justiça e demais autoridades, para administrar a Febem.
Os quase dez anos de governo peessedebista em São Paulo transformaram a Febem (Fundação para o Bem-Estar do Menor) em um açougue onde se trituram os filhos infratores da gente pobre. Adolescentes vivem ali uma rotina de privação, humilhação, espancamento e abuso. Em nome da "segurança pública", o Tribunal de Justiça de SP tem derrubado todas as ações civis públicas apresentadas pelo Ministério Público paulista pedindo melhorias nas unidades de internação.
Era preciso que os rapazes de Brasília experimentassem um dia na vida da Febem paulista -quem sabe se envergonhariam para sempre de seus crimes, da falta de objetivos humanos em seu comportamento brutal.

E-mail - mfelinto@uol.com.br


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