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LETRAS JURÍDICAS
A retirada das 30 mil
WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas
Xenofonte, filósofo, escritor e
soldado grego, foi autor da
obra-prima da literatura militar antiga, depois de ter participado da tentativa frustrada de
Ciro para derrubar Artaxerxes
2º do trono persa. Isso aconteceu bons 400 anos antes de
Cristo. Derrotada, a tropa teve
de se retirar, em condições
ruins, desde terras do Irã de hoje até o mar Negro, em epopéia
que Xenofonte descreveu no livro "Anábasis", geralmente conhecido como "A retirada dos
10 mil".
Alfredo d'Escragnolle Taunay, escritor e soldado brasileiro, produziu uma das mais belas criações de nossa literatura
militar. Participou de incursão
sobre território paraguaio, na
guerra iniciada por Solano Lopez. Forçada a se retirar em
maio de 1867, a tropa brasileira
com cerca de 1.700 homens, comandada pelo coronel Carlos
Camisão, marchou de volta, em
caminhos difíceis, perseguida
pelo inimigo, dizimada por
doenças. Taunay descreveu a
epopéia no livro "A retirada da
Laguna".
Muitas epopéias poderiam
ser lembradas, inspiradoras de
grandes obras. No anticlímax
de todas elas, estou em busca
de escritores para descrever
outra espécie de retirada, nascida na desorganização moderna.
Começando pelas cartas de
motorista, cujos titulares (dizem que são 30 mil) aguardam
a retirada, sem definição de
prazo pelas autoridades, responsáveis por sua emissão e
por multar os que não as tenham. O documento é retido,
na sua renovação, mas a carta
nova será entregue Deus sabe
quando. Só José Simão seria capaz de acentuar a frustração
dos ... "retirantes", necessitados do documento no trabalho,
em viagem, para usar seus veículos. Como alternativa, penso
em Franz Kafka.
Mas, não é só. Há a retirada
dificultada a milhões de filiados ao INSS, instituição para a
qual a seguridade social consiste em segurar o dinheiro dos
credores, segurar processos
que envolvam créditos não pagos, segurar muito do que signifique realização de suas funções constitucionais. Augusto
dos Anjos poderia escrever versos vigorosos para registrar a
angústia da retirada impedida.
Que tal, ainda, Mary Shelley,
autora de "Frankenstein"?
A retirada do comprovante
de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas mereceria a ironia de Bernard
Shaw, se ainda vivesse. A inscrição foi imposta por lei. As
firmas nacionais precisam ter o
documento no dia-a-dia e, sob
pena de autuação e multa, a
partir de julho. A mesma Receita Federal que autua e multa
não tem atendido rapidamente
as filas dos que buscam o documento. Criou sistema de senhas, marcando a data para
voltarem. Consequência:
criou-se a máfia da senha,
substituída esta semana por telefones ocupados. Troco Shaw
por Mario Puzzo, criador de "O
Poderoso Chefão".
A dúvida sobre os escritores é
assunto muito sério. Deverão
dar tratamento jurídico a seu
trabalho, pois o artigo 37 da
Constituição coloca, entre os
princípios da administração
pública, os da moralidade e da
eficiência. O parágrafo 1º do artigo determina que a lei disciplinará a participação do usuário nas reclamações contra o
exercício negligente ou abusivo
dos serviços e na avaliação da
qualidade interna e externa e
do atendimento. Lida a Constituição, quero que o poder público, pelo menos, contrate um
novo Xenofonte, que, lido daqui a 25 séculos, mostre a sofrida bagunça enfrentada na retirada dos 30 mil. Ou, melhor
ainda, mostre a vergonha da
SPTrans S.A., que, negligente
aos ter roubados vales-transporte, publica anúncio atribuindo a balbúrdia de filas à
sua porta aos que querem a retirada dos novos vales, a que
têm direito. Trata o artigo 37
pelo lado do avesso.
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