São Paulo, Sábado, 06 de Fevereiro de 1999
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LETRAS JURÍDICAS

A retirada das 30 mil

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Xenofonte, filósofo, escritor e soldado grego, foi autor da obra-prima da literatura militar antiga, depois de ter participado da tentativa frustrada de Ciro para derrubar Artaxerxes 2º do trono persa. Isso aconteceu bons 400 anos antes de Cristo. Derrotada, a tropa teve de se retirar, em condições ruins, desde terras do Irã de hoje até o mar Negro, em epopéia que Xenofonte descreveu no livro "Anábasis", geralmente conhecido como "A retirada dos 10 mil".
Alfredo d'Escragnolle Taunay, escritor e soldado brasileiro, produziu uma das mais belas criações de nossa literatura militar. Participou de incursão sobre território paraguaio, na guerra iniciada por Solano Lopez. Forçada a se retirar em maio de 1867, a tropa brasileira com cerca de 1.700 homens, comandada pelo coronel Carlos Camisão, marchou de volta, em caminhos difíceis, perseguida pelo inimigo, dizimada por doenças. Taunay descreveu a epopéia no livro "A retirada da Laguna".
Muitas epopéias poderiam ser lembradas, inspiradoras de grandes obras. No anticlímax de todas elas, estou em busca de escritores para descrever outra espécie de retirada, nascida na desorganização moderna.
Começando pelas cartas de motorista, cujos titulares (dizem que são 30 mil) aguardam a retirada, sem definição de prazo pelas autoridades, responsáveis por sua emissão e por multar os que não as tenham. O documento é retido, na sua renovação, mas a carta nova será entregue Deus sabe quando. Só José Simão seria capaz de acentuar a frustração dos ... "retirantes", necessitados do documento no trabalho, em viagem, para usar seus veículos. Como alternativa, penso em Franz Kafka.
Mas, não é só. Há a retirada dificultada a milhões de filiados ao INSS, instituição para a qual a seguridade social consiste em segurar o dinheiro dos credores, segurar processos que envolvam créditos não pagos, segurar muito do que signifique realização de suas funções constitucionais. Augusto dos Anjos poderia escrever versos vigorosos para registrar a angústia da retirada impedida. Que tal, ainda, Mary Shelley, autora de "Frankenstein"?
A retirada do comprovante de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas mereceria a ironia de Bernard Shaw, se ainda vivesse. A inscrição foi imposta por lei. As firmas nacionais precisam ter o documento no dia-a-dia e, sob pena de autuação e multa, a partir de julho. A mesma Receita Federal que autua e multa não tem atendido rapidamente as filas dos que buscam o documento. Criou sistema de senhas, marcando a data para voltarem. Consequência: criou-se a máfia da senha, substituída esta semana por telefones ocupados. Troco Shaw por Mario Puzzo, criador de "O Poderoso Chefão".
A dúvida sobre os escritores é assunto muito sério. Deverão dar tratamento jurídico a seu trabalho, pois o artigo 37 da Constituição coloca, entre os princípios da administração pública, os da moralidade e da eficiência. O parágrafo 1º do artigo determina que a lei disciplinará a participação do usuário nas reclamações contra o exercício negligente ou abusivo dos serviços e na avaliação da qualidade interna e externa e do atendimento. Lida a Constituição, quero que o poder público, pelo menos, contrate um novo Xenofonte, que, lido daqui a 25 séculos, mostre a sofrida bagunça enfrentada na retirada dos 30 mil. Ou, melhor ainda, mostre a vergonha da SPTrans S.A., que, negligente aos ter roubados vales-transporte, publica anúncio atribuindo a balbúrdia de filas à sua porta aos que querem a retirada dos novos vales, a que têm direito. Trata o artigo 37 pelo lado do avesso.



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