São Paulo, sábado, 06 de março de 2010

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WALTER CENEVIVA

Trote


É triste admitir que o trote também se presta a pessoas mal formadas, sem respeito pelo ser humano

A PALAVRA trote tem muitos significados. Vão do passo dos cavalos até a designação de ritual de recebimento de novos componentes de uma sociedade ou de um grupo, especialmente entre estudantes universitários.
Consiste na imposição de tarefas ridículas, desnecessárias e, em certos casos, perigosas. É razoável, porém, admitir que o trote integra a natureza humana, desde tempos imemoriais, das forças armadas às organizações religiosas.
Corresponde a perturbar a vida do calouro. Abre caminho para que ele (ou ela) se integre ao grupo, do qual passou a fazer parte.
A ideia do trote e do dar trote integram idiomas de muitos países. Para ficar num só exemplo, o vocábulo "haze" que significa, em inglês, cerração, nevoeiro, também corresponde às tais tarefas impostas aos novos estudantes. O veterano persegue o calouro, com gritos e ameaças, que sua "vítima", em condições normais, aceita e passa a participar do que sabe ser o modo de acolhida no início do curso. Passou a assumir, nas esquinas de movimento, à tarefa de pedir dinheiro como contribuição para o divertimento (digamos assim) dos alunos.
A maior parte das escolas até contribui para que esse rito seja integrado por modos de aproximação, mais civilizados do que foram no passado. Em São Paulo, a Faculdade do Largo São Francisco, tem a "peruada", uma passeata de calouros, sempre muito ruidosa. O paulistano tem mostrado compreensão pela brincadeira. Acostumou-se a ver nela uma diversão, embora torne o trânsito ruim, muito ruim.
É triste admitir que o trote também se presta a pessoas mal formadas, sem respeito pelo ser humano, para a humilhação do calouro, em extremos intoleráveis. Segundo as aparências, é o que aconteceu na Faculdade de Medicina de Mogi das Cruzes, sobretudo quando se pensa que estamos falando de futuros médicos. De tempos em tempos tais excessos se repetem, mais nos cursos clássicos (engenharia, medicina e direito) que em outros, quando um grupo, geralmente pequeno, de veteranos resolve mostrar suas insuficiências mentais.
Do rito de recebimento passam ao abuso. Descambam para a ilegalidade. Não raro para a criminalidade. Com o domínio sobre o calouro, explodem todos os complexos.
Duas anotações cabem a esse respeito. A primeira é a da excepcionalidade das situações flagrantemente abusivas. Em grande parte, porque o calouro participa da agitação, pois logo estará do outro lado da festa.
A segunda é a de que se o trote fosse, verdadeiramente, uma prática reprovável, não teria sobrevivido ao longo dos séculos. Mesmo considerando estas duas anotações, é absolutamente inaceitável que o veterano imponha condutas que causam dano à saúde do calouro, à sua vida ou o atinjam em sua dignidade pessoal, independente do sexo.
Sob esse ângulo o que terá acontecido em Mogi das Cruzes não pode ser aceito, nem pela universidade nem pelas próprias agremiações acadêmicas das várias carreiras. É da tradição do ensino superior no Brasil que muitas manifestações coletivas dos alunos têm contribuído para a defesa dos menos favorecidos pela fortuna ou dos vitimados por órgãos oficiais. Por isso a punição dos excessos corresponderá à preservação do que há de melhor na tradição universitária.


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