São Paulo, terça, 6 de maio de 1997.

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Paulo Freire e o jerimum pernambucano

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Todas as homenagens deveriam ser feitas enquanto os homenageados estivessem vivos. Honras póstumas soam a oportunismo, especialmente em casos como o do educador Paulo Freire, morto na semana passada, aos 75 anos.
É difícil acreditar -para quem não passava de uma menina nos anos 60 do regime militar- que o Brasil tenha expulso de seu território, por 16 anos, um intelectual como Paulo Freire. Não haverá homenagem que apague essa mancha da história.
Mas as classes dominantes brasileiras são tradicionalmente cínicas. Elas não demonstram qualquer culpa, qualquer intenção de reparar erros históricos. O epíteto mais aplicado pela imprensa a Paulo Freire, no dia de sua morte, foi ``intelectual de esquerda'', numa tentativa senão de diminuir, ao menos de restringir a importância de sua obra.
Numa entrevista à Folha em 1994, ele já reclamava disso: ``Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Hoje diriam que eu sou apenas um saudosista das esquerdas.''
Mais do que um pensador da educação, Freire foi um brasileiro como poucos, conhecedor profundo e amante sensível dessa nossa consistência específica chamada brasilidade.
Como Darcy Ribeiro ou Euclides da Cunha, era um estudioso do Brasil em sentido largo, tipo de homem que sabia do que falava porque tinha experimentado e vivido a realidade que era seu tema.
O Brasil, ao perder os últimos remanescentes dessa classe de homens, está perdido: sobram os teóricos e os profetas do nada (ou de seus próprios umbigos), gente da minha geração ou um pouco mais velha. Sobram os antropólogos de jornal, os filósofos de gabinetes e seus discípulos confusos, filhos mimados da classe média alta. Sobram os equivocados burocratas da educação.
Ao voltar do exílio em 1979, Paulo Freire confessou seu intenso desejo de comer jerimum com feijão, hábito alimentar bastante pernambucano. Para quem não sabe, jerimum é como se chama no Nordeste a abóbora. Haverá quem dê uma interpretação folclorizante a essa manifestação espontânea vinda de um intelectual.
Erro rasteiro, porque em Freire não se separava o homem do intelectual. Sua sabedoria era a de quem conhece por dentro o tecido de que é feita uma cultura, as cores, os sons, o gosto, a textura.
Num pequeno ensaio chamado ``A importância do ato de ler'' (1981), ele reconhece nos bichos, nas árvores, nas frutas, nas ventanias e tempestades de sua infância distante os primeiros ``textos'' que leu.
``Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo (...). Foi nesse tempo que eu, possivelmente, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da noção de amolegar.''
Essa a idéia de leitura -de cultura e vida- que o Brasil perde ao perder Freire. Que se dê a sua obra o valor que ela merece, é o que se espera.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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