|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Paulo Freire e o jerimum pernambucano
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Todas as homenagens deveriam ser feitas enquanto os homenageados estivessem vivos.
Honras póstumas soam a
oportunismo, especialmente
em casos como o do educador
Paulo Freire, morto na semana
passada, aos 75 anos.
É difícil acreditar -para
quem não passava de uma menina nos anos 60 do regime
militar- que o Brasil tenha
expulso de seu território, por
16 anos, um intelectual como
Paulo Freire. Não haverá homenagem que apague essa
mancha da história.
Mas as classes dominantes
brasileiras são tradicionalmente cínicas. Elas não demonstram qualquer culpa,
qualquer intenção de reparar
erros históricos. O epíteto mais
aplicado pela imprensa a Paulo Freire, no dia de sua morte,
foi ``intelectual de esquerda'',
numa tentativa senão de diminuir, ao menos de restringir a
importância de sua obra.
Numa entrevista à Folha em
1994, ele já reclamava disso:
``Nos anos 60 fui considerado
um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Hoje
diriam que eu sou apenas um
saudosista das esquerdas.''
Mais do que um pensador da
educação, Freire foi um brasileiro como poucos, conhecedor
profundo e amante sensível
dessa nossa consistência específica chamada brasilidade.
Como Darcy Ribeiro ou Euclides da Cunha, era um estudioso do Brasil em sentido largo, tipo de homem que sabia
do que falava porque tinha experimentado e vivido a realidade que era seu tema.
O Brasil, ao perder os últimos
remanescentes dessa classe de
homens, está perdido: sobram
os teóricos e os profetas do nada (ou de seus próprios umbigos), gente da minha geração
ou um pouco mais velha. Sobram os antropólogos de jornal, os filósofos de gabinetes e
seus discípulos confusos, filhos
mimados da classe média alta.
Sobram os equivocados burocratas da educação.
Ao voltar do exílio em 1979,
Paulo Freire confessou seu intenso desejo de comer jerimum
com feijão, hábito alimentar
bastante pernambucano. Para
quem não sabe, jerimum é como se chama no Nordeste a
abóbora. Haverá quem dê uma
interpretação folclorizante a
essa manifestação espontânea
vinda de um intelectual.
Erro rasteiro, porque em
Freire não se separava o homem do intelectual. Sua sabedoria era a de quem conhece
por dentro o tecido de que é
feita uma cultura, as cores, os
sons, o gosto, a textura.
Num pequeno ensaio chamado ``A importância do ato de
ler'' (1981), ele reconhece nos
bichos, nas árvores, nas frutas,
nas ventanias e tempestades
de sua infância distante os primeiros ``textos'' que leu.
``Na tonalidade diferente de
cores de um mesmo fruto em
momentos distintos: o verde da
manga-espada verde, o verde
da manga-espada inchada; o
amarelo esverdeado da mesma
manga amadurecendo (...). Foi
nesse tempo que eu, possivelmente, fazendo e vendo fazer,
aprendi a significação da noção de amolegar.''
Essa a idéia de leitura -de
cultura e vida- que o Brasil
perde ao perder Freire. Que se
dê a sua obra o valor que ela
merece, é o que se espera.
E-mailmfelinto@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|