São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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DIREITOS HUMANOS
Crime aconteceu em 1983, em Fortaleza; mulher acusa marido, que diz que disparo ocorreu em um assalto
Acusado de ter atirado nunca esteve preso

DA ENVIADA ESPECIAL

Dezoito anos depois de se divorciar, a farmacêutica aposentada Maria da Penha Maia Fernandes, 56, não lembra o dia exato em que se casou e nem o cartório em que a cerimônia ocorreu. "Apaguei da memória."
Maria da Penha rasgou as fotos do ex-marido, o economista colombiano Marco Antônio Heredia Viveiros, a quem acusa de ter tentado matá-la em 1983. Só sobrou o negativo de um "três por quatro", guardado no fundo de uma pilha de documentos. "É para um caso de necessidade".
O difícil para ela é esquecer a violência a que foi submetida e que a deixou paraplégica.
Segundo seu relato, no dia 29 de maio de 1993, Heredia Viveiros a atingiu nas costas com um tiro de espingarda calibre 12, enquanto ela dormia na residência da família, em Fortaleza.
Heredia Viveiros disse à polícia que a família havia sido vítima de um assalto, mas a versão não se sustentou na delegacia nem na Justiça. Ele foi condenado em dois julgamentos, mas jamais passou um dia preso.
A primeira condenação, a 15 anos de reclusão, ocorreu em 91. Os advogados dele recorreram da decisão, alegando que a sentença foi baseada em fatos que não constavam nos autos e que as perguntas que o juiz faz aos sete cidadãos que compõe o júri popular estavam mal formuladas.
O Tribunal de Justiça do Ceará concordou que os quesitos não foram bem formulados e determinou novo julgamento, que só ocorreu em 96. "Quando eles levaram cinco anos para refazer as perguntas, eu deixei de acreditar na Justiça", conta Maria da Penha.
A defesa de Heredia Viveiros entrou com recurso, que ainda está tramitando, contra o segundo julgamento.
A falta de punição efetiva fez com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenasse o Brasil, pela primeira vez, por um caso de violência doméstica.

Demora
"Aqui no Ceará processo não tramita, é empurrado", diz Maria da Penha, que mantém cópias atualizadas com o resumo da tramitação do processo.
A aposentada relata que, em um determinado momento, foi obrigada a apelar para uma amiga da secretária do desembargador que estava com a papelada. "Fizemos um esforço danado, os funcionários do gabinete me ajudaram e o processo andou."
O primeiro julgamento de Heredia Viveiros foi adiado duas vezes, e o segundo, três.
Maria da Penha acabou conhecendo o Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), a instituição que apresenta petições junto à comissão da OEA, depois de haver publicado um livro que conta sua história.
O casamento, que durou seis anos, é muito mais uma história de violência do que de amor. Maria da Penha e Heredia Viveiros se conheceram na Universidade de São Paulo, em 75, quando ambos faziam mestrado.
Com o nascimento da primeira filha, um ano depois, o casal mudou-se para Fortaleza, onde estava a família dela.
"Ele chegou aqui com outra atitude, virou um homem grosseiro", diz ela. Mas a situação tornou-se insuportável após o nascimento da segunda filha. "Ele me proibia de atender as meninas quando elas choravam de noite. Ele levantava da cama e batia nas crianças até elas pararem de chorar", afirma.
Até hoje Maria da Penha diz não saber exatamente o que motivou Heredia Viveiros a tentar matá-la. "Eu suponho que ele não queria a separação", diz ela. Após o nascimento da terceira filha, ela optou pelo divórcio e sugeriu isso a ele.
"Eu ainda não acreditava que ele pudesse me fazer mal", diz ela. Logo após o tiro, Penha chegou a acreditar que poderia realmente ter sido vítima de um assalto.
Mas, pouco tempo depois, ela conta que o então marido tentou eletrocutá-la, obrigando-a a entrar num chuveiro elétrico com a fiação totalmente comprometida. "Violência doméstica é assim mesmo. Vai crescendo, crescendo", diz Maria da Penha.



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