São Paulo, segunda-feira, 06 de maio de 2002

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MOACYR SCLIAR

O fundo do poço

 Indústria de SP ainda não viu o fundo do poço. Dinheiro, 1º.mai.2002

Os negócios estavam cada vez piores -as vendas diminuindo, as dívidas aumentando- e ele se desesperava. Onde é que isso vai parar, era a pergunta que se fazia. Uma pergunta que ninguém -nem sua mulher, nem consultores, nem mesmo videntes- sabia responder. Uma pergunta que estava começando a enlouquecê-lo, que lhe tirava o sono. Uma noite, depois de revolver-se horas na cama, adormeceu de simples exaustão. E aí teve um sonho muito revelador.
Nesse sonho, estava dentro de um poço, pendurado na corda. Tentava içar-se e atingir a borda, mas não o conseguia. Cada vez que subia alguns centímetros, escorregava outro tanto. E as mãos doloridas, esfoladas, já não conseguiam sustentá-lo. Gritava por socorro, mas era inútil: ninguém aparecia. Aparentemente aquele era um poço abandonado -tanto que não havia balde, só corda, aquela grossa e velha corda à qual se agarrava.
Em desespero, tomou uma decisão: já que não podia subir, o melhor seria deixar-se cair. Talvez morresse, da queda, ou afogado; talvez não. Se morresse, acabaria de uma vez com o sofrimento. Se não morresse, ao menos já não precisaria fazer força para se sustentar. Aguardaria ali pelo resgate -ou pelo resignado fim.
Contou até três e soltou as mãos. A queda não foi grande: dois metros, se tanto. Ele estivera mais próximo ao fundo do que imaginava. Outra surpresa: não havia água ali, só um pouco de barro sobre uma camada de concreto. Esta seria a razão pela qual o poço havia sido abandonado -a falta de água. E isso significava que ele estaria um pouco mais confortável. A única coisa que o incomodava era o coaxar de algum sapo invisível. Deve ser um príncipe encantado esperando pelo beijo da princesa, pensou, com melancólico humor.
Talvez por associação de idéias com a imagem do príncipe, algo lhe ocorreu. Em criança, ouvira muitas histórias sobre cofres com dinheiro e jóias enterrados no fundo de poços. Parece que aquele havia sido um esconderijo preferencial, antes dos bancos e dos paraísos fiscais. E, se houvesse ali, naquele poço, um cofre com um tesouro -um tesouro capaz de resolver seus problemas financeiros? Fantasia maluca, claro, mas ele podia se permitir o luxo de fantasias malucas. Abaixou-se e começou a explorar com os dedos o lodo do fundo. De repente, deu com uma argola de metal. Era uma tampa, também de concreto. Sob o fundo, havia algo. Meu Deus, perguntou-se, o coração batendo forte, o que será que eu descobri?
Puxando a argola com muito esforço, conseguiu erguer a pesada tampa. Mas não encontrou o cofre com o tesouro. O que havia ali era uma enorme cavidade. A boca de um segundo poço. No fundo do qual ele podia ouvir um sapo coaxando, melancólico. Como um príncipe encantado à espera do beijo redentor.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.





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