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MOACYR SCLIAR
O fundo do poço
Indústria de SP ainda não viu o fundo do poço.
Dinheiro, 1º.mai.2002
Os negócios estavam cada
vez piores -as vendas diminuindo, as dívidas aumentando- e ele se desesperava. Onde é
que isso vai parar, era a pergunta
que se fazia. Uma pergunta que
ninguém -nem sua mulher,
nem consultores, nem mesmo videntes- sabia responder. Uma
pergunta que estava começando
a enlouquecê-lo, que lhe tirava o
sono. Uma noite, depois de revolver-se horas na cama, adormeceu
de simples exaustão. E aí teve um
sonho muito revelador.
Nesse sonho, estava dentro de
um poço, pendurado na corda.
Tentava içar-se e atingir a borda,
mas não o conseguia. Cada vez
que subia alguns centímetros, escorregava outro tanto. E as mãos
doloridas, esfoladas, já não conseguiam sustentá-lo. Gritava por
socorro, mas era inútil: ninguém
aparecia. Aparentemente aquele
era um poço abandonado -tanto que não havia balde, só corda,
aquela grossa e velha corda à
qual se agarrava.
Em desespero, tomou uma decisão: já que não podia subir, o melhor seria deixar-se cair. Talvez
morresse, da queda, ou afogado;
talvez não. Se morresse, acabaria
de uma vez com o sofrimento. Se
não morresse, ao menos já não
precisaria fazer força para se sustentar. Aguardaria ali pelo resgate -ou pelo resignado fim.
Contou até três e soltou as
mãos. A queda não foi grande:
dois metros, se tanto. Ele estivera
mais próximo ao fundo do que
imaginava. Outra surpresa: não
havia água ali, só um pouco de
barro sobre uma camada de concreto. Esta seria a razão pela qual
o poço havia sido abandonado
-a falta de água. E isso significava que ele estaria um pouco mais
confortável. A única coisa que o
incomodava era o coaxar de algum sapo invisível. Deve ser um
príncipe encantado esperando
pelo beijo da princesa, pensou,
com melancólico humor.
Talvez por associação de idéias
com a imagem do príncipe, algo
lhe ocorreu. Em criança, ouvira
muitas histórias sobre cofres com
dinheiro e jóias enterrados no
fundo de poços. Parece que aquele
havia sido um esconderijo preferencial, antes dos bancos e dos paraísos fiscais. E, se houvesse ali,
naquele poço, um cofre com um
tesouro -um tesouro capaz de
resolver seus problemas financeiros? Fantasia maluca, claro, mas
ele podia se permitir o luxo de
fantasias malucas. Abaixou-se e
começou a explorar com os dedos
o lodo do fundo. De repente, deu
com uma argola de metal. Era
uma tampa, também de concreto.
Sob o fundo, havia algo. Meu
Deus, perguntou-se, o coração batendo forte, o que será que eu descobri?
Puxando a argola com muito
esforço, conseguiu erguer a pesada tampa. Mas não encontrou o
cofre com o tesouro. O que havia
ali era uma enorme cavidade. A
boca de um segundo poço. No
fundo do qual ele podia ouvir um
sapo coaxando, melancólico. Como um príncipe encantado à espera do beijo redentor.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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