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DATA VENIA
O avesso do direito
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
O jusfilósofo italiano Giorgio
del Vecchio, nos anos 50, disse
que o Direito é essencialmente
violável (existe por graça de sua
violabilidade) e que as noções de
"direito" e "torto" são interdependentes e complementares. Só há o
Direito porque existe o Torto.
No início deste século, Sigmund
Freud, o fundador da psicanálise,
em "Totem e Tabu", escreveu que
não há necessidade de proibir algo que ninguém deseja; se algo é
proibido, deve ser por que é desejado. Portanto, para toda lei existe um desejo contraposto a ela.
Foi assim desde a primeira lei: a
proibição do incesto, possibilitadora de qualquer organização social, a que podemos, psicanaliticamente, chamar de "lei do pai".
Afinal, qual a razão de escrever
"não cobiçarás a mulher do próximo", "não matarás", "não roubarás"? Certamente, alguém cobiça a mulher do próximo, tem o
desejo de matar, roubar...
A ordenação jurídica, por meio
de atos normativos (leis, decretos), nada mais é que o estabelecimento de proibições ou permissões para organizar as relações
sociais. A lei jurídica é um interdito proibitório dos impulsos inviabilizadores do convívio social.
Ela se faz necessária principalmente para os que são incapazes,
por si mesmos, de frear ou conter
seus impulsos ou desejos em desacordo com a organização social.
Essas reflexões e princípios da
ciência jurídica remetem-nos à
atual discussão sobre as várias
tentativas de reformas em nosso
ordenamento jurídico. Entre elas,
em especial, a do Código Penal.
Por exemplo, já é quase pacífico
para a comissão dessa reforma
penal que o adultério e a bigamia
não devem mais ser tipificados
como crimes. Alega-se suposto
excesso de intervenção do Estado
na vida privada e se diz que, na
prática judiciária, esses crimes
nunca são invocados etc.
Há que pensar, entretanto, um
outro lado da questão. A retirada
desse tipo penal poderá ter repercussões na esfera civil e em toda a
organização social e jurídica.
Aquilo que se proíbe é justamente o que se deseja. A "destipificação" do adultério como crime
não poderia significar uma quebra no princípio da monogamia e
a perda do referencial jurídico da
interdição da poligamia?
Isso não quer significar uma
defesa moralista do não-adultério, mas apenas coerência com a
ordenação jurídica em geral -
inclusive, e principalmente, com
o direito de família. Nem significa considerar o adultério como
causa de separações, pois a culpa
de um desenlace conjugal é muito
mais profunda que isso.
Os tipos penais adultério e bigamia talvez devam mesmo ser
apenas referenciais de uma cultura. Mas são referenciais necessários, que funcionam como possíveis interditos e valores morais,
numa tentativa de colocar limites
e barrar excessos do desejo.
Sem esses referenciais, não seria
possível a ordenação jurídica nos
moldes em que está. É que somos
sujeitos do desejo e, portanto, determinados por ele. E ele, muitas
vezes, precisa mesmo de um limite externo - a lei jurídica.
Rodrigo da Cunha Pereira, 39, advogado, é
presidente do Instituto Brasileiro de Direito de
Família, conselheiro da OAB-MG, professor de
direito de família da PUC-MG e autor de "Direito
de Família - Uma Abordagem Psicanalítica".
E-mail: ibdfam@net.em.com.br
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