São Paulo, sábado, 6 de junho de 1998

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DATA VENIA
O avesso do direito

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA

O jusfilósofo italiano Giorgio del Vecchio, nos anos 50, disse que o Direito é essencialmente violável (existe por graça de sua violabilidade) e que as noções de "direito" e "torto" são interdependentes e complementares. Só há o Direito porque existe o Torto.
No início deste século, Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, em "Totem e Tabu", escreveu que não há necessidade de proibir algo que ninguém deseja; se algo é proibido, deve ser por que é desejado. Portanto, para toda lei existe um desejo contraposto a ela.
Foi assim desde a primeira lei: a proibição do incesto, possibilitadora de qualquer organização social, a que podemos, psicanaliticamente, chamar de "lei do pai".
Afinal, qual a razão de escrever "não cobiçarás a mulher do próximo", "não matarás", "não roubarás"? Certamente, alguém cobiça a mulher do próximo, tem o desejo de matar, roubar...
A ordenação jurídica, por meio de atos normativos (leis, decretos), nada mais é que o estabelecimento de proibições ou permissões para organizar as relações sociais. A lei jurídica é um interdito proibitório dos impulsos inviabilizadores do convívio social.
Ela se faz necessária principalmente para os que são incapazes, por si mesmos, de frear ou conter seus impulsos ou desejos em desacordo com a organização social.
Essas reflexões e princípios da ciência jurídica remetem-nos à atual discussão sobre as várias tentativas de reformas em nosso ordenamento jurídico. Entre elas, em especial, a do Código Penal.
Por exemplo, já é quase pacífico para a comissão dessa reforma penal que o adultério e a bigamia não devem mais ser tipificados como crimes. Alega-se suposto excesso de intervenção do Estado na vida privada e se diz que, na prática judiciária, esses crimes nunca são invocados etc.
Há que pensar, entretanto, um outro lado da questão. A retirada desse tipo penal poderá ter repercussões na esfera civil e em toda a organização social e jurídica.
Aquilo que se proíbe é justamente o que se deseja. A "destipificação" do adultério como crime não poderia significar uma quebra no princípio da monogamia e a perda do referencial jurídico da interdição da poligamia?
Isso não quer significar uma defesa moralista do não-adultério, mas apenas coerência com a ordenação jurídica em geral - inclusive, e principalmente, com o direito de família. Nem significa considerar o adultério como causa de separações, pois a culpa de um desenlace conjugal é muito mais profunda que isso.
Os tipos penais adultério e bigamia talvez devam mesmo ser apenas referenciais de uma cultura. Mas são referenciais necessários, que funcionam como possíveis interditos e valores morais, numa tentativa de colocar limites e barrar excessos do desejo.
Sem esses referenciais, não seria possível a ordenação jurídica nos moldes em que está. É que somos sujeitos do desejo e, portanto, determinados por ele. E ele, muitas vezes, precisa mesmo de um limite externo - a lei jurídica.


Rodrigo da Cunha Pereira, 39, advogado, é presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, conselheiro da OAB-MG, professor de direito de família da PUC-MG e autor de "Direito de Família - Uma Abordagem Psicanalítica".

E-mail: ibdfam@net.em.com.br



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