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LÍNGUA VIVA
"Não sou eu quem me navega"
PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha
O último disco de Paulinho da Viola ("Bebadosamba") é simplesmente primoroso. É um verdadeiro monumento da cultura popular
deste país.
Uma das canções é "Timoneiro", música de Paulinho e
letra de Hermínio Bello de
Carvalho. "Não sou eu quem
me navega, quem me navega é
o mar", diz o refrão.
Aí está o xis do problema: a
concordância verbal quando
se usa esse tipo de expressão.
Na língua do dia-a-dia, é
muito comum que o verbo ser
apareça na terceira pessoa do
singular, em frases como "Não
foi eu que fiz", ou simplesmente "Não foi nós".
Essa concordância -gramaticalmente errada- talvez
se explique pelo uso generalizado da terceira pessoa ("Cabe dez"; "Falta quinze";
"Acabou as fichas"; "Sobrou
vinte"; "Chegou os manuais"), o que é comum em
todas as classes sociais.
Deve-se considerar que há
dois verbos nesse tipo de frase:
o verbo ser, que necessariamente concorda com o pronome a que se refere (Não fui eu;
Não foi ele; Não fomos nós;
Não foram eles), e o verbo que
se prende ao pronome quem,
preferencialmente conjugado
na terceira do singular.
Ninguém acha estranha a
concordância em perguntas
diretas, como "Quem foi?",
"Quem fez isso?" ou "Quem
paga?", em que o verbo fica na
terceira do singular.
Assim, para a norma culta,
a frase de Hermínio Bello de
Carvalho é perfeita. O verbo
ser concorda com o pronome
eu ("Não sou eu"); o verbo
navegar, que se prende ao
pronome quem, fica na terceira pessoa do singular ("quem
me navega").
"Quem paga sou eu", diz
muita gente de mão aberta.
Mas, se a ordem for invertida
("Sou eu quem paga"), já pinta careta. Dá no mesmo. As
duas são equivalentes.
Se você diz "Quem paga somos nós", nenhum problema
em "Somos nós quem paga".
E como fica a concordância
quando se usa "Sou eu que",
"Não fomos nós que" ou "Foram eles que"?
É outra história. O verbo
que vem depois do "que" necessariamente será conjugado
na mesma pessoa em que se
encontra o verbo ser. Então
deve-se dizer "Não fui eu que
fiz", "Não fomos nós que dissemos", "Não foram eles que
denunciaram".
Os mais velhos devem lembrar-se de uma canção da década de 70, "Última Forma",
de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, cuja letra diz: "E
graças a Deus não vai ser eu
quem vai mudar".
Não vai ser eu? Eu não vai
ser? É óbvio que não. O ótimo
poeta Paulo Pinheiro misturou as bolas e se deixou levar
pelo velho problema da inversão. No padrão coloquial,
quando o verbo vem na frente, lasca-se a terceira do singular. A correção é muito simples: "Não vou ser eu quem
vai mudar".
Essa música foi gravada pelo MPB-4 e pela cantora Márcia, que não perceberam o
problema e mantiveram a
concordância errada.
Vale repetir: usando quem,
prefere-se o verbo seguinte na
terceira do singular; usando
que, o verbo segue a concordância do verbo ser. É isso.
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