São Paulo, terça-feira, 07 de março de 2000


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DESAFINANDO A HISTÓRIA

O samba sem amarras

MANOLO FLORENTINO

Teve início na noite de domingo o desfile da nata das escolas de samba cariocas, organizado ao redor de um tema único. A diretriz da Liga não passou de orientação e talvez por isso a criatividade das agremiações fluiu livremente. A ênfase recaiu mais sobre temas razoavelmente assentados do que sobre aspectos factuais de nossa história. O resultado não poderia ser melhor: letras amiúde bem elaboradas, distantes do perfil de relatórios historiográficos. Por isso mesmo torna-se difícil buscar referências históricas unicamente nas letras. Os desfiles foram igualmente reveladores.
Três escolas chutaram o balde da pertinência historiográfica. A Grande Rio radicalizou, descartando in totum os 21 temas propostos pela Liga. Lançou mão, isto sim, da tecnologia e do apuro para transformar o seu "Carnaval à Vista" em um belo painel da evolução das festas populares brasileiras. Tampouco a Vila estabeleceu explícitos sentidos acadêmicos, optando por uma celebração sem amarras. Tanto a letra de seu samba como o desfile preocuparam-se em fixar uma certa representação do índio, em muito caudatária da produção romântica do século XIX. Foi o primeiro "samba étnico" da noite, no sentido de que elidiu a tese do encontro das três raças.
Embora a maioria dos sambas trouxesse ao menos uma alusão a um desejo de futuro melhor, somente a Mocidade fez disso o mote central - "é bom recordar o que já passou/também vou mostrar como estou/eu quero aprender um pouco mais a caminhar/com os índios do futuro viajar".
Com "Ordem e Progresso, Amor e Folia no Milênio da Fantasia", a Porto da Pedra deu forma à transição da Monarquia para a República. E o fez de modo procedente.
A letra acentua a influência francesa na estruturação de nosso republicanismo e, sobretudo, a clivagem entre a elite e as camadas subalternas - expressa na absoluta apatia com que o povo assistiu a fundação do novo regime. O desfile foi correto, com destaque para o resgate do amor como componente fundamental, embora esquecido, do ideário positivista. Mas o que realmente fez a diferença foi a proposta de uma República alternativa.
"Brasil, teu Espírito é Santo" retomou uma tradição cara à própria Caprichosos: a do "samba ideológico", fruto da explícita adesão dos atores da celebração momesca ao seu próprio tempo. Realizou-se um tour desde os anos 50 até o enxotamento de Collor, mediante referências edificantes - bossa nova, jovem guarda, o movimento hippie e outras -, contrapontos intencionais aos Anos de Chumbo. O desfile radicalizou o engajamento político.
A apresentação de "Liberdade! Sou negro, Raça e Tradição!" foi duplamente dramática: devido aos percalços na evolução da escola, e porque a própria letra assumiu ares de lamento, na reiterativa lembrança do tráfico e da escravização dos africanos ("vim de Angola, da minha mãe África/ num navio negreiro, clamando por Zambi/vim para um solo bonito e maneiro/caí na senzala para trabalhar/.../Até hoje se ouve um lamento ecoar").
Destaque do desfile: a forte presença da África, cuja história raramente é objeto de preocupação da academia. Impossível deixar de mencionar o originalíssimo carro do Tumbeiro - apuro visual pleno de referências históricas. Foi o segundo "enredo étnico" da noite.
A Portela arrematou o desfile com a Era Vargas. Optou por uma abordagem linear: a revolução de 1930 e a derrocada da República Velha, a intentona comunista, o DIP, as prisões, a valorização da raça brasileira, culminando com o suicídio de Getúlio. Mas quem ouve o samba não deixa de fazer o contraponto entre a triste condição do brasileiro de hoje e a do trabalhador no ideário getulista.


Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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