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DESAFINANDO A HISTÓRIA
O samba sem amarras
MANOLO FLORENTINO
Teve início na noite de domingo o desfile da nata das escolas de samba cariocas, organizado ao redor de um tema
único. A diretriz da Liga não
passou de orientação e talvez
por isso a criatividade das agremiações fluiu livremente. A ênfase recaiu mais sobre temas
razoavelmente assentados do
que sobre aspectos factuais de
nossa história. O resultado não
poderia ser melhor: letras
amiúde bem elaboradas, distantes do perfil de relatórios
historiográficos. Por isso mesmo torna-se difícil buscar referências históricas unicamente
nas letras. Os desfiles foram
igualmente reveladores.
Três escolas chutaram o balde
da pertinência historiográfica. A
Grande Rio radicalizou, descartando in totum os 21 temas propostos pela Liga. Lançou mão, isto sim, da tecnologia e do apuro
para transformar o seu "Carnaval à Vista" em um belo painel da
evolução das festas populares
brasileiras. Tampouco a Vila estabeleceu explícitos sentidos acadêmicos, optando por uma celebração sem amarras. Tanto a letra de seu samba como o desfile
preocuparam-se em fixar uma
certa representação do índio, em
muito caudatária da produção
romântica do século XIX. Foi o
primeiro "samba étnico" da noite, no sentido de que elidiu a tese
do encontro das três raças.
Embora a maioria dos sambas
trouxesse ao menos uma alusão a
um desejo de futuro melhor, somente a Mocidade fez disso o
mote central - "é bom recordar
o que já passou/também vou
mostrar como estou/eu quero
aprender um pouco mais a caminhar/com os índios do futuro
viajar".
Com "Ordem e Progresso,
Amor e Folia no Milênio da Fantasia", a Porto da Pedra deu forma à transição da Monarquia para a República. E o fez de modo
procedente.
A letra acentua a influência
francesa na estruturação de nosso republicanismo e, sobretudo,
a clivagem entre a elite e as camadas subalternas - expressa na
absoluta apatia com que o povo
assistiu a fundação do novo regime. O desfile foi correto, com
destaque para o resgate do amor
como componente fundamental,
embora esquecido, do ideário
positivista. Mas o que realmente
fez a diferença foi a proposta de
uma República alternativa.
"Brasil, teu Espírito é Santo"
retomou uma tradição cara à
própria Caprichosos: a do "samba ideológico", fruto da explícita
adesão dos atores da celebração
momesca ao seu próprio tempo.
Realizou-se um tour desde os
anos 50 até o enxotamento de
Collor, mediante referências edificantes - bossa nova, jovem
guarda, o movimento hippie e
outras -, contrapontos intencionais aos Anos de Chumbo. O
desfile radicalizou o engajamento político.
A apresentação de "Liberdade!
Sou negro, Raça e Tradição!" foi
duplamente dramática: devido
aos percalços na evolução da escola, e porque a própria letra assumiu ares de lamento, na reiterativa lembrança do tráfico e da
escravização dos africanos ("vim
de Angola, da minha mãe África/
num navio negreiro, clamando
por Zambi/vim para um solo bonito e maneiro/caí na senzala para trabalhar/.../Até hoje se ouve
um lamento ecoar").
Destaque do desfile: a forte
presença da África, cuja história
raramente é objeto de preocupação da academia. Impossível deixar de mencionar o originalíssimo carro do Tumbeiro - apuro
visual pleno de referências históricas. Foi o segundo "enredo étnico" da noite.
A Portela arrematou o desfile
com a Era Vargas. Optou por
uma abordagem linear: a revolução de 1930 e a derrocada da República Velha, a intentona comunista, o DIP, as prisões, a valorização da raça brasileira, culminando com o suicídio de Getúlio. Mas quem ouve o samba
não deixa de fazer o contraponto
entre a triste condição do brasileiro de hoje e a do trabalhador
no ideário getulista.
Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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