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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A ciranda dos sonhos secretos
MOACYR SCLIAR
O presidente Fernando Henrique
Cardoso afirmou que se "arrepende imensamente" de não ter aceitado convite do cineasta Glauber
Rocha para participar como ator
em um de seus filmes. Brasil,
29.fev.2000
"Gostaria de ser um bailarino",
afirma Pitta. Cotidiano,
1.mar.2000
Depois que o presidente e o
prefeito de São Paulo revelaram suas aspirações, uma verdadeira onda confessional surgiu no país. Descobriu-se que
muitas pessoas conhecidas tinham projetos não realizados,
e que estavam dispostas a falar
sobre ele. O que deu uma idéia
a um produtor de TV: ele bolou
um "talk show" chamado
"Conte seu sonho". Celebridades vinham e falavam sobre
seus desejos secretos, a vida que
podia ter sido e que não foi. Revelações sensacionais eram feitas: um senador contou que
sempre sonhara em ser flautista; um deputado queria ter sido passista em escola de samba. E o ministro que ambicionara ser balonista e voar sobre
a imensidão da Amazônia? E o
prefeito que desejara, seriamente, ser cantor de boate?
Aos poucos, um novo retrato
do país foi aparecendo, um retrato muito diferente daquele
traçado com base nos discursos, nas declarações oficiais,
nas entrevistas convencionais.
Um retrato curioso às vezes, estranho outras vezes, mas sempre revelador, segundo o comentário do apresentador do
"Conte seu sonho" (que era
apresentador contra a vontade; por ele, teria sido médico).
Estaria o país entrando em um
outro rumo, o rumo da verdade, perturbadora verdade, mas
verdade?
Esta pergunta ficou sem resposta. Tudo porque a produção
teve a infeliz idéia de convidar
um garoto de rua para contar
seu sonho secreto. Um tanto
embaraçado diante das câmeras, o menino confessou que
seu sonho era ser auxiliar de
cozinheiro. Para comer bastante, acrescentou.
Foi um anticlímax. A partir
daí, o programa decaiu consideravelmente. O presidente
voltou a ser presidente, o prefeito voltou a ser prefeito, e chegou a seu fim a ciranda dos sonhos secretos.
A coluna do escritor Moacyr Scliar é publicada excepcionalmente hoje. Na próxima segunda-feira, ela volta a ser publicada em seu dia habitual. A coluna da escritora Marilene Felinto volta a ser publicada a partir da próxima terça-feira.
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