São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

URBANISMO
"São Paulo é a cidade com mais muros por m2 do mundo", diz Peter Marcuse, filho do pensador alemão
Urbanista se assusta com "feudos' de SP

CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

O filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979) ficou célebre como uma das maiores referências intelectuais dos movimentos estudantis que pipocaram em várias partes do mundo em 68. Inspirou e foi inspirado pela utopia daquele período, cujo epicentro foram as barricadas parisienses de maio.
Seu único filho, o urbanista Peter Marcuse, se considera um "marcuseano", embora o horizonte de suas reflexões não sejam mais as utopias, mas os seus destroços. Ocupa-se da privatização do espaço público, da formação de guetos urbanos e das formas de marginalização no capitalismo avançado.
Com 69 anos, Peter deixa hoje o Brasil, após 28 dias no país.
Formado em direito, ele estudou em Harvard, Yale e Berkeley antes de se tornar professor da Columbia University, em Nova York, onde mora atualmente.
Veio ao Brasil a convite do Núcleo de Pesquisa em Informação Urbana da USP para, como diz, "trocar experiências urbanas".
Durante sua estada no país, fez conferências sobre a "guetificação" das cidades, o aprofundamento da exclusão social e as novas formas de ordenamento urbano. Respondeu muito, e perguntou ainda mais.
Manuseando de maneira um tanto desengonçada um mapa amarelo da cidade, com uma câmera fotográfica no bolso, percorreu lugares da cidade tão diferentes como o Alto da Boa Vista e o Capão Redondo.
Nesses passeios, de carro, metrô ou helicóptero, enriqueceu com muitos rolos de filmes a sua coleção de fotos de muros e grades, que guarda em sua casa, perto da Columbia University.
Aliás, foi no próprio cercado dessa universidade que ele buscou inspiração para começar suas pesquisas sobre guetos urbanos.
Marcuse se intrigou com a altura de seus muros e com o rigor do grupo de segurança particular que patrulhava o interior do campus.
A compreensão disso, segundo ele, não estava muito longe. Fica a nove quadras de lá. Essa é a distância que separa a universidade do bairro do Harlem, que mais tarde ele classificou como "um dos três grandes guetos de Nova York" (junto com Bronx e Brooklyn).
No seu vocabulário, gueto não tem apenas o sentido clássico. "É a exclusão que surge da mescla entre a pauperização e o racismo."
Marcuse ficou assustado com a quantidade e a dimensão de "guetos" paulistanos e com sua distribuição na cidade.
Em São Paulo, disse, tanto os "guetos" quanto as "cidadelas", categoria que ele inventou para descrever os "feudos" em que os ricos se escondem do resto da sociedade, são muito menos concentrados, e portanto menos visíveis.
É essa fragmentação social e o aumento da privatização da vida pessoal (fatores que ele havia acompanhado, "de forma mais diluída", na África do Sul) que ele vê como o futuro das metrópoles.
"São Paulo está na frente. Nova York caminha para o que é São Paulo hoje", disse à Folha o urbanista, que nasceu em Berlim, mas mudou com seu pai para os Estados Unidos, em 1933.
Três dias antes de voltar para Nova York, Peter passeou de carro por São Paulo, durante três horas, com a reportagem da Folha e o urbanista Ricardo Toledo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Escolheu visitar o condomínio de luxo Alphaville (na Grande São Paulo), "uma típica cidadela".
No caminho, perguntou sobre o como funciona a cidade, falou de seu pai, discorreu sobre utopias e se espantou com o número de cercas nos prédios: "É a cidade com mais muros por m2 do mundo".

Folha - O trabalho do sr. é uma continuação dos questionamentos promovidos por seu pai, já que ambos discutem como o que a sociedade produz é distribuído?
Peter Marcuse -
Meus trabalhos chegam às mesmas conclusões que as dos trabalhos de meu pai, mas em diferentes direções. Ambos concordamos que a sociedade não é organizada para maximizar a satisfação de necessidades humanas.
Folha - Quais os fatores que fazem com que o sr. acredite nisso?
Marcuse -
A sociedade deixa muitas pessoas acreditarem que estão bem providas e outras sabendo que estão muito pouco providas. Creio que nenhum desses opostos está feliz. Não estão em posição de se desenvolver como gostariam. Isso pode ser aplicado aqui, e revela a extensão da desigualdade na sociedade brasileira.
Não é exatamente uma utopia ter que viver em uma comunidade na qual você precise de permissão para entrar, tenha muros rodeando toda a área em que você mora e tenha que passar a maior parte do seu tempo em congestionamentos.
Certamente os que moram em favelas também não vivem uma utopia. Acho que a sociedade atingiu um nível em que poderia dar o melhor para esses dois grupos.
Folha - Então a utopia ainda seria possível em nossa sociedade?
Marcuse -
Creio que sim. Meu pai escreveu certa vez um artigo chamado "O Fim da Utopia". Nele dizia que a idéia de uma sociedade utópica não era tão fantasiosa. Era possível com a tecnologia que tínhamos, suficiente para satisfazer as necessidades do homem. Utopias não seriam mais utopias.
Folha - Quais as principais conclusões do sr. sobre São Paulo?
Marcuse -
Acho que o processo de privatização da vida pessoal foi mais longe em São Paulo do que em qualquer parte do mundo em que estive. Essa é a cidade com mais muros por m2 do mundo.
Folha - Mas os muros são apenas sinais da desigualdade, ou são criadores da desigualdade?
Marcuse -
Os dois. Alphaville e outros condomínios murados excluem as pessoas.
Folha - O sr. acha que seu pai ainda teria os mesmos pontos de vista depois do fim da União Soviética?
Marcuse -
Penso que suas teorias seriam ainda mais radicais. Não penso que o fim do sistema soviético lhe surpreenderia. Ele havia previsto a essência disso já nos anos 50. Apontou a contradição de um sistema que pretendia ser socialista mas que não permitia liberdades públicas ou privadas.
Folha - O sr. se diria marxista?
Marcuse -
Isso me lembra a piada que diz que Marx não se consideraria um marxista. Penso que as maiores contribuições para o tipo de trabalho que faço são de Marx. Porém creio que sou mais marcuseano do que marxista.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.