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URBANISMO
"São Paulo é a cidade com mais muros por m2 do mundo", diz Peter Marcuse, filho do pensador alemão
Urbanista se assusta com "feudos' de SP
CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local
O filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979) ficou célebre como uma das maiores referências
intelectuais dos movimentos estudantis que pipocaram em várias
partes do mundo em 68. Inspirou
e foi inspirado pela utopia daquele
período, cujo epicentro foram as
barricadas parisienses de maio.
Seu único filho, o urbanista Peter Marcuse, se considera um
"marcuseano", embora o horizonte de suas reflexões não sejam
mais as utopias, mas os seus destroços. Ocupa-se da privatização
do espaço público, da formação de
guetos urbanos e das formas de
marginalização no capitalismo
avançado.
Com 69 anos, Peter deixa hoje o
Brasil, após 28 dias no país.
Formado em direito, ele estudou
em Harvard, Yale e Berkeley antes
de se tornar professor da Columbia University, em Nova York, onde mora atualmente.
Veio ao Brasil a convite do Núcleo de Pesquisa em Informação
Urbana da USP para, como diz,
"trocar experiências urbanas".
Durante sua estada no país, fez
conferências sobre a "guetificação" das cidades, o aprofundamento da exclusão social e as novas formas de ordenamento urbano. Respondeu muito, e perguntou ainda mais.
Manuseando de maneira um
tanto desengonçada um mapa
amarelo da cidade, com uma câmera fotográfica no bolso, percorreu lugares da cidade tão diferentes como o Alto da Boa Vista e o
Capão Redondo.
Nesses passeios, de carro, metrô
ou helicóptero, enriqueceu com
muitos rolos de filmes a sua coleção de fotos de muros e grades,
que guarda em sua casa, perto da
Columbia University.
Aliás, foi no próprio cercado
dessa universidade que ele buscou
inspiração para começar suas pesquisas sobre guetos urbanos.
Marcuse se intrigou com a altura
de seus muros e com o rigor do
grupo de segurança particular que
patrulhava o interior do campus.
A compreensão disso, segundo
ele, não estava muito longe. Fica a
nove quadras de lá. Essa é a distância que separa a universidade do
bairro do Harlem, que mais tarde
ele classificou como "um dos três
grandes guetos de Nova York"
(junto com Bronx e Brooklyn).
No seu vocabulário, gueto não
tem apenas o sentido clássico. "É
a exclusão que surge da mescla entre a pauperização e o racismo."
Marcuse ficou assustado com a
quantidade e a dimensão de "guetos" paulistanos e com sua distribuição na cidade.
Em São Paulo, disse, tanto os
"guetos" quanto as "cidadelas",
categoria que ele inventou para
descrever os "feudos" em que os
ricos se escondem do resto da sociedade, são muito menos concentrados, e portanto menos visíveis.
É essa fragmentação social e o
aumento da privatização da vida
pessoal (fatores que ele havia
acompanhado, "de forma mais
diluída", na África do Sul) que ele
vê como o futuro das metrópoles.
"São Paulo está na frente. Nova
York caminha para o que é São
Paulo hoje", disse à Folha o urbanista, que nasceu em Berlim, mas
mudou com seu pai para os Estados Unidos, em 1933.
Três dias antes de voltar para
Nova York, Peter passeou de carro
por São Paulo, durante três horas,
com a reportagem da Folha e o urbanista Ricardo Toledo, professor
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Escolheu visitar o condomínio
de luxo Alphaville (na Grande São
Paulo), "uma típica cidadela".
No caminho, perguntou sobre o
como funciona a cidade, falou de
seu pai, discorreu sobre utopias e
se espantou com o número de cercas nos prédios: "É a cidade com
mais muros por m2 do mundo".
Folha - O trabalho do sr. é uma
continuação dos questionamentos
promovidos por seu pai, já que
ambos discutem como o que a sociedade produz é distribuído?
Peter Marcuse - Meus trabalhos
chegam às mesmas conclusões que
as dos trabalhos de meu pai, mas
em diferentes direções. Ambos
concordamos que a sociedade não
é organizada para maximizar a satisfação de necessidades humanas.
Folha - Quais os fatores que fazem com que o sr. acredite nisso?
Marcuse - A sociedade deixa
muitas pessoas acreditarem que
estão bem providas e outras sabendo que estão muito pouco providas. Creio que nenhum desses
opostos está feliz. Não estão em
posição de se desenvolver como
gostariam. Isso pode ser aplicado
aqui, e revela a extensão da desigualdade na sociedade brasileira.
Não é exatamente uma utopia ter
que viver em uma comunidade na
qual você precise de permissão para entrar, tenha muros rodeando
toda a área em que você mora e tenha que passar a maior parte do
seu tempo em congestionamentos.
Certamente os que moram em
favelas também não vivem uma
utopia. Acho que a sociedade atingiu um nível em que poderia dar o
melhor para esses dois grupos.
Folha - Então a utopia ainda seria
possível em nossa sociedade?
Marcuse - Creio que sim. Meu
pai escreveu certa vez um artigo
chamado "O Fim da Utopia". Nele dizia que a idéia de uma sociedade utópica não era tão fantasiosa.
Era possível com a tecnologia que
tínhamos, suficiente para satisfazer as necessidades do homem.
Utopias não seriam mais utopias.
Folha - Quais as principais conclusões do sr. sobre São Paulo?
Marcuse - Acho que o processo
de privatização da vida pessoal foi
mais longe em São Paulo do que
em qualquer parte do mundo em
que estive. Essa é a cidade com
mais muros por m2 do mundo.
Folha - Mas os muros são apenas
sinais da desigualdade, ou são
criadores da desigualdade?
Marcuse - Os dois. Alphaville e
outros condomínios murados excluem as pessoas.
Folha - O sr. acha que seu pai ainda teria os mesmos pontos de vista
depois do fim da União Soviética?
Marcuse - Penso que suas teorias seriam ainda mais radicais.
Não penso que o fim do sistema
soviético lhe surpreenderia. Ele
havia previsto a essência disso já
nos anos 50. Apontou a contradição de um sistema que pretendia
ser socialista mas que não permitia
liberdades públicas ou privadas.
Folha - O sr. se diria marxista?
Marcuse - Isso me lembra a piada que diz que Marx não se consideraria um marxista. Penso que as
maiores contribuições para o tipo
de trabalho que faço são de Marx.
Porém creio que sou mais marcuseano do que marxista.
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