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PASQUALE CIPRO NETO
"Quero até morrer do que viver assim..."
Na semana passada, analisei os mecanismos presentes
em construções como "Abasteça
25 litros", "O fiscal extorquiu o
comerciante" etc.
Vimos que frases como essas podem resultar de dois processos: o
da economia ("Abasteça seu carro com 25 litros" se resume a
"Abasteça 25 litros") e o da influência da regência de verbos sinônimos ou pertencentes ao mesmo campo semântico ("O fiscal
extorquiu dinheiro do comerciante" passa a "O fiscal extorquiu o comerciante", talvez por
influência de verbos como
"ameaçar", "coagir" etc.).
Como bem lembrou o atentíssimo leitor (e colega) Macílio Gomes, de Fortaleza, o verbo "repercutir" é outro que, no rádio e na
televisão, já passou por um processo semelhante. Em vez de "Vamos ver como repercutiu a derrota do Corinthians" ou "...como a
derrota do Corinthians repercutiu" (que equivalem a "Vamos
ver a repercussão da derrota do
Corinthians"), tem-se empregado
algo como "Vamos repercutir a
derrota do Corinthians". Os dicionários (incluídos aí os de regência) ainda não dão acolhida a
essa construção, talvez porque
faltam registros escritos desse uso.
A situação é ótima para que se
analise outro membro dessa turma: "preferir". A sintaxe originária desse verbo é "alguém prefere
algo a algo" ("Prefiro vitrola a rádio / automóvel a trem, trem / a
navio, navio a avião...", escreveu
o poeta Vinicius de Moraes).
De origem latina, "preferir" significa "levar à frente", "pôr
adiante", "pôr em primeiro lugar". Quem prefere põe em posição superior, gosta mais. Teoricamente, é isso que explica por que,
em se tratando do padrão formal
da língua, são consideradas redundantes construções como
"prefiro (muito) mais".
Na linguagem espontânea, a
construção "preferir algo a algo" é
incomum. Em seu lugar, ouve-se
(e não raro se lê) a forma "preferir
(mais/muito mais) algo (do) que
algo", o que se explica facilmente
pela evidente influência de estruturas comparativas empregadas,
por exemplo, com o verbo "gostar" ("Gosto [muito] mais de teatro [do] que de cinema").
Por falar em influência, Roberto
e Erasmo exageraram na dose,
em "Quero que Vá Tudo para o
Inferno" ("Quero até morrer do
que viver assim"). Percebeu? Adotou-se com o verbo "querer" a regência de "preferir" que sofre influência de "gostar"...
A célebre "Metamorfose Ambulante" (de Raul Seixas) começa
justamente com uma frase em
que ocorre esse emprego de "preferir" ("Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter
aquela velha opinião formada sobre tudo"). No padrão formal, teríamos "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante a ter aquela
velha opinião...". Que tal?
Em "Geni e o Zepelim", Chico
Buarque preferiu o padrão formal (com o requinte da inversão):
"E a deitar com homem tão nobre
/ tão cheirando a brilho e a cobre /
preferia amar com os bichos".
Como têm tratado do caso os
vestibulares de ponta? A julgar
pelo que se vê nas questões específicas sobre regência (e nos enunciados das diversas questões das
provas de língua e literatura), a
forma recomendada como padrão continua sendo a tradicional ("preferir algo a algo"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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