São Paulo, quinta-feira, 07 de outubro de 2004

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ALTO PADRÃO

Casarão próximo a lançamento imobiliário muda de aparência com reforma na fachada, mas continua precário por dentro

Construtora de prédio maquia cortiços

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

Por fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento. É assim que a vendedora Maria Benedita dos Santos Silva, 55, define a casa em que vive, na rua Artur Prado, região central de São Paulo. A fachada, recém-pintada, faz com que o imóvel se assemelhe a um casarão de classe média. Assim que o portão é aberto, porém, o visitante se vê diante de um cortiço.
A "ilusão de ótica" é explicada pelos próprios moradores do local. Segundo eles, a construtora Cyrela maquiou a fachada de três cortiços vizinhos para não prejudicar as vendas de um condomínio de luxo que está sendo construído na região -o Vereda Paraíso. "Se não pintasse [a fachada], o pessoal ia dizer que aqui é maloca. E quem é que vai querer morar perto de maloca?", questiona a vendedora.
Fora Benedita, que acha que a situação piorou, todos os moradores dos cortiços ouvidos pela reportagem não hesitam em dizer que a reforma agradou. "Tinha gente com vergonha de dizer que morava aqui dentro", afirma o frentista Reinaldo Silva, 34, que administra uma das casas.
Mas isso não os impede de dizer que também se sentiram discriminados pelos novos vizinhos ricos. "Só fizeram isso porque as pessoas podiam desistir de comprar, achar que a gente é favelado. Se não quisessem fazer o prédio, não ia ter ajuda nenhuma", diz a faxineira Ana Paula Barbosa, 22.
"O portão, por exemplo, a gente queria que eles colocassem um de grade. Mas colocaram um fechado, que faz isso aqui parecer um presídio. Isso revela preconceito. Eles acham que, se a pessoa é pobre, é bandido. Não é assim", afirma o cozinheiro Manoel Gomes da Silva, 41, que administra outra das três pensões.
Da janela de seu quarto/casa, onde vive com a mulher e um filho de um ano, Manoel pode ver a construção do Vereda Paraíso e os cartazes que anunciam as vantagens do novo prédio: piscina coberta, quadra de futebol, espaço para redes. Cada apartamento irá custar, no mínimo, R$ 400 mil.
Já Manoel paga R$ 250 mensais por seu cômodo. Os dois banheiros do local são usados por nove famílias. Na falta de espaço, as roupas são penduradas no corredor. E no teto há um buraco que, segundo Manoel, pode levar à queda da laje a qualquer momento. Para ele, é o buraco, e não a beleza ou a feiúra da fachada, a maior fonte de preocupação.
A empresa também realizou algumas reformas na parte interna dos imóveis, mas, segundo os moradores, grande parte ou não foi concluída ou apresentou problemas de acabamento.
No cômodo da dona-de-casa Maria Lúcia da Silva, 34, foram colocadas telhas onduladas pelas quais a água entra em dias chuvosos. No imóvel do meio, onde mora a dona-de-casa Janete Ferreira Barbosa, 44, a calha nova precisou ser consertada. No imóvel seguinte, administrado por Reinaldo, um dos banheiros exibe um buraco onde deveria haver uma janela.
"Muitas coisas ficaram pela metade ou foram malfeitas. Mesmo sendo de graça, a gente fica chateado com um serviço assim", diz o frentista, que afirma já ter reclamado na empresa. Sem resposta.
A obra também recebe críticas de gente que nem mora nos cortiços. "Eles [a empresa] deveriam ter encontrado com os moradores uma forma de melhorar o local, mas não assim. Esse portão alto, que colocaram na frente, cobre tudo, é uma prisão", afirma a médica aposentada Maria Hélia Rocha, 72, que mora a um quarteirão dos três imóveis. "Para mim, isso foi querer camuflar a pobreza."


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