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ARTIGO
Violência e doença mental: fato ou ficção?
WAGNER F. GATTAZ
especial para a Folha
O episódio recente num cinema de shopping center, envolvendo o assassinato de três pessoas e
o ferimento de várias por um jovem em tratamento psiquiátrico,
despertou na população e nos
profissionais de saúde mental a
associação entre violência e doença mental.
Em estudos histórico-antropológicos, J. Monahan, Universidade da Virgínia, conclui que "a
crença de que as doenças mentais
estão associadas à violência é historicamente constante e culturalmente universal". Essa percepção
pública tem consequências na
prática social (estigma) contra indivíduos portadores de doenças
mentais. A estigmatização do
doente mental é o maior obstáculo para sua reintegração social.
Portanto, antes de aceitá-la devemos analisar criticamente, primeiro, se a associação existe de
fato e, segundo, qual é a magnitude de seu efeito nos crimes de violência em geral.
Antes quero definir os termos. A
expressão doença mental, como
tem sido usada na mídia, inclui
todo e qualquer desvio do comportamento, desde abuso de álcool e drogas até quadros psicóticos. Em senso estrito (e correto),
devemos falar de doença mental
quando nos referimos a quadros
definidos de alterações psíquicas
qualitativas, como por exemplo a
esquizofrenia, as doenças afetivas
(antes chamadas de psicose maníaco-depressiva) e outras psicoses. Por outro lado, existem alterações quantitativas, como a deficiência mental e os transtornos de
personalidade, que representam
"desvios extremos do modo como
o indivíduo médio, em uma dada
cultura, percebe, pensa, sente e,
particularmente, se relaciona
com os outros". Portanto, não são
doenças, mas extremos de um
contínuo. Nesse sentido usarei os
termos.
Em um estudo epidemiológico
na Alemanha, H. Haefner e W.
Boeker encontraram que não havia um excesso de doentes mentais dentre os criminosos violentos da década 1955-1964, quando
comparados com a população geral. Encontraram também que a
idade média do doente mental
criminoso por ocasião do crime
era dez anos maior do que a do
criminoso da população geral, sugerindo que a doença mental, ao
contrário, retarda a expressão do
ato de violência.
Seguiram-se inúmeros estudos
sobre a associação doença mental-violência, incluindo a ampla
investigação coordenada pelo
National Institute of Mental
Health, nos EUA (Epidemiological Catchment Area, ECA). Esses
estudos não encontraram uma
associação ou encontraram apenas uma associação discreta entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência. Entretanto, todos eles apontam para
dois outros fatores invariavelmente associados à violência: o
abuso de substancias tóxicas (álcool e drogas) e a presença do
transtorno de personalidade anti-social.
Os efeitos de álcool e drogas não
surpreendem, visto que ambos
enfraquecem o autocontrole e liberam o ato de violência. As características do transtorno de personalidade anti-social já são, em
si, predisponentes para atos contra a sociedade: indiferença pelos
sentimentos alheios; desrespeito
por normas sociais; incapacidade
de manter relacionamentos, embora não haja dificuldades em estabelecê-los; baixo limiar para
descarga de agressão e violência;
incapacidade de experimentar
culpa e aprender com a experiência, particularmente punição; e
propensão marcante para culpar
os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para o comportamento que levou ao conflito
com a sociedade (Classificação
Internacional de Transtornos
Mentais, CID-10).
O grupo de pesquisa liderado
por H. Steadman, New York, não
encontrou diferença na prevalência da violência em doentes mentais sem abuso de substâncias,
comparados com a população geral. O risco de violência em indivíduos da população geral com
abuso de álcool ou drogas foi
duas vezes maior do que em pacientes esquizofrênicos sem abuso. Esse risco é potencializado
quando álcool ou drogas coexistem em indivíduo portador de
transtorno mental, segundo J. W.
Swanson e colaboradores, coordenadores do ECA-Project. O
maior risco para expressão de
violência ocorre na combinação
de abuso de álcool/drogas com
transtorno de personalidade anti-social.
Esses achados sugerem que a
doença mental em senso estrito
contribui muito pouco para a
ocorrência de crimes de violência.
A magnitude dessa contribuição
pode ser avaliada pelo estudo de
maior impacto sobre doença
mental e crime, realizado na Dinamarca e publicado em 1996 por
S. Hodgins e colaboradores. Os
autores identificaram todos os indivíduos nascidos entre 1944 e
1947 (360.000 indivíduos). Quando esses indivíduos tinham 43
anos de idade, identificou-se
através dos registros centrais
quais tinham um registro de internações em hospitais psiquiátricos e quais tinham sido condenados por infrações do código penal.
Comparou-se então a freqüência
e o tipo de crimes cometidos entre
os indivíduos com e sem internação psiquiátrica, assim como entre os diferentes diagnósticos psiquiátricos. Encontrou-se uma
maior freqüência de crimes de
violência em pacientes que haviam sido hospitalizados do que
em indivíduos sem internações
psiquiátricas. O resultado para
homens, no período de 1978-1990,
está no quadro abaixo.
Assim, na Dinamarca, indivíduos que foram internados em
hospitais psiquiátricos por doença mental têm um risco 4,5 vezes
maior de praticar um crime de
violência que indivíduos sem internação. Os riscos para outros
transtornos aumentam até 8,5 vezes em pessoas com abuso de drogas. Fica claro que álcool e drogas, também em nosso meio um
problema de saúde pública, contribuem mais para a violência
que as doenças mentais.
Entretanto, esses dados são superestimados: na Dinamarca
existe uma assistência psiquiátrica exemplar. Todo o cidadão tem
acesso gratuito a medicamentos e
a tratamento psiquiátrico em
uma rede de serviços complementares abertos, como ambulatórios, centros de reabilitação, oficinas abrigadas e apartamentos comunitários. Isso possibilita que a
maior parte dos pacientes passe a
maior parte de suas vidas fora do
hospital. A internação fica reservada apenas para os casos mais
graves, difíceis de serem tratados
nos serviços complementares. J.
Monahan e H.J. Steadman mostraram que pacientes com um
comportamento agressivo terão
uma chance maior de ser hospitalizados do que pacientes não
agressivos com sintomas semelhantes.
Portanto, o critério de seleção
para o estudo na Dinamarca, baseado em registros de internação
hospitalar, já selecionou, a priori,
uma amostra de pacientes mais
agressivos do que a média dos
doentes mentais, resultando em
uma estatística inflacionada do
número de crimes de violência.
Mesmo com essas reservas metodológicas, os resultados desse estudo falam contra o estereótipo
existente, pois mostram que a
grande maioria de doentes mentais na Dinamarca (no mínimo
93%, seguramente mais) não é
violenta.
Esses dados não podem ser imediatamente importados para o
Brasil. É plausível supor que os
índices de crimes de violência em
cidades como São Paulo ou Rio
de Janeiro são maiores que na Dinamarca. Como se trata aqui de
criminalidade intencional, portanto consciente, é possível que
ela esteja aumentada apenas na
população sem doença mental,
diminuindo portanto o excesso
relativo em doentes. Mas isso é
uma hipótese que necessita de verificação experimental.
O fato é que a associação entre
doença mental e violência, ao
menos na intensidade em que
tem sido noticiada, não tem base
real. O indivíduo psicótico pode
se tornar agressivo se estiver alcoolizado ou sob o efeito de drogas. Alias, o não-psicótico também.
Wagner F. Gattaz, 48, é professor titular e
chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo
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