São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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GILBERTO DIMENSTEIN
Clube da luta é aqui


Ao sair atirando no cinema de um shopping center, durante a projeção de "Clube da Luta", o ex-futuro médico Mateus da Costa Meira atingiu não apenas a platéia, mas a população da cidade de São Paulo.
Mal a cidade se recuperava das cenas da Febem, com suas rebeliões e corpos decepados, Mateus maculou um dos escassos espaços nos quais o paulistano se imagina protegido -o shopping center.
Tamanho foi o impacto que, em instantes, esqueceram-se as selvagerias da Febem. Logo se espalharam, movidas pela histeria, propostas como instalar detectores de metal nos shoppings.
O shopping center é encarado como uma espécie de oásis artificial, protegido da violência e da luz natural. Pode-se andar a pé sem olhar, assustado, para trás; sem meninos de rua; sem carros que não respeitam a faixa; sem cachorros defecando nos caminhos.

O toque cinematográfico é dado pelo óbvio paradoxo de que Mateus estava para se formar médico, treinado, supostamente, para salvar vidas.
Ele acabou por remeter à lembrança dos estudantes de medicina, em São Paulo, que, numa festa de trote, envolveram-se com o afogamento de um calouro.
Transformada num Clube da Luta, São Paulo não cessa de produzir fatos emblemáticos que reforçam, a cada dia, a sensação de orfandade, de desamparo -é apenas a face mais aguda de um sentimento, hoje, disseminado nacionalmente.
Símbolos como o do endividado que, para ganhar dinheiro, pagou para que lhe cortassem a mão; aleijado, ganharia com as apólices de seguro. Incendiou a imaginação da cidade quando alegou que fora atacado numa caixa 24 horas, mais uma arapuca high tech da cidade.

A Febem envia o pavor de que a delinquência juvenil seria irrecuperável, nutrida com o dinheiro do contribuinte.
Nunca se prendeu tanta gente, superlotando ainda mais as cadeias. Mesmo assim, o crime apresenta recorde atrás de recorde. Quadrilhas já determinam toque de recolher nas zonas periféricas, como se fossem autoridades supremas.
Para aumentar a orfandade, o poder público é visto como incompetente e corrupto. Nunca se expuseram, com todas cruezas, as redes de propina na cidade, com laços na prefeitura e Câmara -geraram-se poucas punições para a amplitude das descobertas.

Surgem, agora, denúncias de que nas imediações da cidade -mais precisamente, Campinas- estaria um centro do crime organizado, envolvendo de juízes a parlamentares, passando obviamente por policiais.
As denúncias sobre a rede de narcotráfico já seriam, por si só, motivo suficiente para a percepção de desamparo; poucos temas atormentam tanto os pais como a disseminação de drogas dentro e nas cercanias das escolas.

Coração econômico do país, cidade mundial, São Paulo está doente -o que se reflete em toda a nação.
Daí a importância especial, não só para os paulistanos, da eleição para a prefeitura.
Chegamos ao ponto de abandono e deboche que Fernando Collor brinca de candidato a prefeito.
A próxima eleição é um momento que tem tudo para se transformar num marco divisório, canalizando as energias criativas e positivas da cidade, onde vive o que há de mais sofisticado no capital humano brasileiro.
Com seu grau de escolaridade e cosmopolitismo, a cidade tem tudo para dar uma virada semelhante à de Nova York, desde que a comunidade assuma suas responsabilidades junto com um poder público mais sério e eficaz.
Seriedade começa pela exigência de que o eleito não faça da cidade trampolim para cobiças política; deve ser o lugar para quem não sonha em ser governador ou presidente -mas prefeito de São Paulo.

PS - Esclareço: sou paulistano e adoro viver em São Paulo, justamente por testemunhar a riqueza do capital humano -daí meus otimismo sobre as perspectivas da cidade. De resto, quem vive na Vila Madalena e conhece seus personagens, não tem motivos para sentir saudade de Nova York.
A violência transformou-se, ali, em beleza. Muros do bairros são recuperados por jovens da Febem, compondo mosaicos, orientados por artistas plásticos. Se dermos chance, as mãos que esmurram produzem arte.


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