São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Sem ilusões

Aí você sai para jantar com amigos e vai a um restaurante bem chique. O maître, que de paletó preto e calça listada parece até um noivo, é cheio de gentilezas; faz maneirismos à mesa, propõe pratos interessantíssimos e ainda diz que o chef pode fazer qualquer coisa que você invente, seja o que for, só para te dar prazer. Por outro lado, os garçons trocam os cinzeiros de três em três minutos, mesmo que ninguém fume na mesa, não deixam seu copo ficar vazio um só instante e ficam de olho o tempo todo para ver se o pão acabou, se o guardanapo caiu no chão, tudo para seu conforto e sua felicidade.
Aí, uma noite, você volta ao mesmo restaurante e como o clima está bom, a bebida descendo bem e todos alegres, a noite vai passando, as outras mesas indo embora, menos a sua, que vai ficando, ficando, até ser a última.
Lá pelas tantas um dos maîtres, daqueles tão elegantes, sai vestindo uma camisa de algodão feia e de má qualidade, com uma capanga debaixo do braço.
Aos poucos vão saindo os garçons, a maioria usa camiseta com alguma estampa, até de propaganda eleitoral, todos loucos para chegar em casa e poder descansar. Aí então você tem uma súbita percepção da realidade, pensa que passou a noite num teatro, e mais: fazendo parte do espetáculo.
Aqueles funcionários tão educados e de tão boas maneiras são pessoas que passam parte da vida representando, e depois de lidar com as comidas e bebidas mais caras, quando terminam, vão esperar o ônibus para voltar para casa, uma casa modesta onde alguém está esperando: a mãe, uma namorada, ou mulher e filhos já dormindo, já que não puderam sair mais cedo porque seu grupo ficou dando risada e dizendo bobagem.
É curioso que esses garçons, que te tratam tão bem, não se despedem quando estão indo embora. Na hora da volta à realidade, quando o espetáculo terminou -já na vida real, portanto-, garçons não falam com clientes. Já pensou encontrar na praia, que é o lugar mais democrático que existe, aquele que é tão solícito e simpático, vocês dois de calção? Vão sorrir um para o outro da mesma maneira? Provavelmente não vão nem se reconhecer.
Você bebe seu penúltimo drinque pensando nessas loucuras da vida. A conta de uma das mesas resolveria o problema de fim de mês daquele garçom; o que se passa na cabeça dele? Será que fica feliz porque tem gente consumindo, o que é a segurança do seu emprego, ou enquanto serve e é gentil pensa no preço do vinho italiano e tem vontade de quebrar a garrafa -cheia- na cabeça do cliente que já pediu a segunda? Não necessariamente para matar, só para fazer aquele estrago, e exatamente na cabeça daquele que dá as maiores gorjetas. E alguém tem o direito de dar uma gorjeta, alta ou baixa, só porque quer? Porque pode? É muita humilhação.
Mas não faz nada; dentro de sua relativa ignorância -ou sabedoria-, sabe que pegaria vários anos de cadeia se fizesse o que está com vontade de fazer, e sabe também que ninguém entenderia; afinal, sempre foi considerado uma flor de funcionário.
Ela vê tudo isso como se fosse um filme; toma mais um drinque, o último, dá várias risadas, as últimas, e vai para casa sozinha, pensando se não seria mais feliz se não pensasse em tanta bobagem.
Ou ainda tivesse alguma ilusão.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br

Texto Anterior: Remédio contra acne é associado a 4 mortes
Próximo Texto: Há 50 anos: Socialistas se opõem sobre acordo de Paris
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.